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sexta-feira, 20 de março de 2009

De como a ideologia matou Tititu

Numa sala apertada, com janelas pequenas e paredes de cal desbotadas, sentaram-se, desiludidos, índios e não-índios.
-- É sempre muito triste. -- disse-me a Lucília na volta.
Ela tinha ido à cidade de Lábrea para a reunião do Distrito de Saúde Indígena (DISEI), da qual participavam a JOCUM e o CIMI, juntamente com órgãos públicos. Lucília sempre ora pela microcidade e por suas mazelas: corrupção, devassidão extrema, doenças, entre outras.
Os habitantes de Lábrea têm os rostos macilentos das muitas malárias e cachaças. Falam sem convicção, parecendo não saber o que dizem. Mas sabem; só não creem mais que algo possa mudar no caos de desserviços que o governo finge prestar àquele arremedo de cidade.
-- Isto é o que mais me dói -- me diz Lucília na volta. -- Os índios baixam a cabeça como animais domesticados à custa de muita dor. O formato da reunião é excludente. Discute-se como em uma repartição pública, e os indígenas não acompanham.
A situação Suruwahá é debatida. Lucília imagina a dificuldade dos técnicos presos no posto distante de tudo. Parece que nem visitar a aldeia eles conseguem. O medo, a pouca educação, o salário menor ainda -- os índios que se virem para chegar até o posto.
E assim foi. No dia 14 de janeiro Naru caminhou sete horas com Tititu nos braços, antes saudável, agora sem vida. A menina estava em péssimo estado e o técnico não sabia como tratá-la. Fez gestos e sons imitando um avião, para mostrar aos pais da menina que ela deveria ser retirada. A noite caiu, a menina piorou. De madrugada o corpinho esfriou e foi endurecendo aos poucos. A alma de Tititu foi para Jaxuwá, no reino onde as bananas são fartas e os peixes, grandes.
Tititu foi escolhida para morrer desde que nasceu. A ideologia que impede os Suruwahá de obter tratamento médico decente prevê que casos de deformidade congênita sejam “eliminados” no nascimento. O pai da menina recusa-se a matá-la ao ver a deformidade com que nasceu. Não conhece a ideologia, ainda se sente gente. Pede ajuda, e Lucília e Moisés conseguem retirá-la da aldeia. Com a oferta de muitos irmãos, ela vai a São Paulo para ser operada no Hospital das Clínicas. Mas a ideologia envia um procurador do Ministério Público, que proíbe a cirurgia. Os médicos ficam chocados com a proibição. A mídia divulga o caso e a pressão aumenta. O procurador desiste do impedimento e a menina é operada. Volta à aldeia, mas precisa de um medicamento mensal. Enquanto a JOCUM está presente, o remédio chega -- agitamos meio mundo, vamos para a Funasa a cada atraso. Até que a ideologia nos impede de voltar à aldeia. Nas mãos da ideologia, os índios não têm chance. Para o CIMI, a Funai e a Funasa eles não são gente. São um construto, uma abstração antropológica, um número nos gráficos. A falta do medicamento na data precisa poderia causar a morte da menina Tititu; morte já prevista, escrita, desenhada e explicada academicamente na voz estridente da ideologia.
É a inexorável força darwiniana. Tristes, imaginamos o sofrimento de Naru, o pai, e de Kusiumã, a mãe, carregando a filha na mata escura para vê-la esfriar de repente ao som de um forró desafinado no barraco de madeira do posto da Funai.
Bráulia Ribeiro

3 comentários:

  1. Roger,

    Triste, muito triste...

    Em Cristo,

    Clóvis

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  2. Ai. Estive duas vezes entre índios em uma aldeia no MS. Convivi com eles por vários dias. Putz. Isso me faz chorar.

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