Ai que prazer
Não cumprir um dever,
Ter um livro para ler
E não fazer!
Fernando Pessoa
Ela assentou-se na cozinha, à mesa de refeições e esperou o filho se aproximar.
Era uma cozinha rudimentar. Havia um canto onde se fazia o fogo. Não poderia ser chamado de fogão. Mas era ali que ela cozinhava com a ajuda de um velha criada.
Uma mulher simples, trabalhadeira. Mãe de dois filhos.
O mais velho se aproximou primeiro:
- Mãe, aquele seu outro filho vai nos abandonar.
Ela permaneceu em silêncio.
- Ele até pegou a sua parte de nossa herança
- É Seu pai me contou… Balbuciou num tom quase inaudível.
- Ele nunca mais voltará - falou fixando os olhos em um tom ameaçador na mãe. É muito dinheiro que ele está levando…
A mãe passou as mãos no rosto, deu um suspiro e tentou disfarçar as lágrimas.
- Antes de seu irmão partir, ele virá se despedir. Então conversarei com ele.
O irmão mais velho saiu inconformado para o trabalho. No caminho cruzou com seu irmão que, pronto para a viagem, ia se despedir dos pais. Se entreolharam e cada um seguiu seu rumo.
A mãe, vendo que o outro filho se aproximava, chamou-o para um lugar à parte. Foram caminhando por meio de um pomar que havia ao lado da casa. Alguns empregados vendo-os começavam a cochichar algo e balançar a cabeça num gesto de reprovação.
Após alguns minutos de silenciosa caminhada, a mãe num misto de raiva e desespero disparou:
- Por que você está fazendo isso conosco, meu filho?
O filho, numa euforia incontida e com certo sorriso sem graça retrucou:
- O que eu faço não é com vocês. É comigo. É a minha vida!
- Sua vida? Sua vida é aqui conosco. Seu pai já está velho, ele precisa de vocês ajudando no trabalho.
- Mãe, pensei que já tínhamos conversado sobre isso… Após um hiato ele continuou. Vim aqui para me despedir e não para discutir.
A mãe virou-lhe as costas e assentou-se num velho tronco de árvore. Dando a entender que se ele partisse não seria com sua bênção.
Agora o filho com lágrimas nos olhos, colocou suas mãos no ombro de sua mãe.
- Mãe, não torne as coisas mais difíceis. Eu não posso viver minha vida inteira à sombra de vocês. Eu quero ser eu mesmo. Fazer o meu próprio caminho. Conhecer o mundo. Desfrutar a vida.
- Você não aguentará o mundo lá fora…
- Mãe, eu não aguento é o mundo aqui dentro. Há quanto tempo não sou mais um filho? Eu me sinto aqui como um empregado… Faça isso! Faça aquilo… Meu irmão pode se encaixar nesse papel. Mas isso não é pra mim. Foi a senhora mesmo quem me ensinou a ser livre.
- E você não é livre?
- Sim mamãe. Por isso estou indo. Se a senhora não me abençoar, irei assim mesmo sem a sua bênção.
- Então você está em busca de liberdade? Ou não seria libertinagem?
O filho riu com o canto de boca e se enrubesceu. Ele sabia que a mãe tinha uma intuição com a qual não se poderia discutir.
- Mãe, não quero uma coisa nem outra. Quero seguir meu próprio caminho, fazer minhas próprias escolhas, tomar minhas próprias decisões. E já tomei. Estou indo…
O filho deu um beijo na cabeça da mãe e retirou-se para sua famosa e infortuna jornada.
A mulher permaneceu imóvel. As lágrimas escorriam-lhe pelo rosto. O coração lhe apertava. Sabia que seu filho estava sendo tragado para uma armadilha e não tinha como impedi-lo.
Em casa, novamente, à tardinha após um dia de choro foi confrontada pelo olhar aflito do marido, que retornava da labuta daquele amargo dia.
Inconsolados não trocaram palavras, até a hora em que a insônia os impulsionara ao diálogo:
- Por que você deu esse dinheiro pra ele?
O pai permaneceu em silêncio.
- E se ele não voltar? Você sabe pelo menos para onde ele está indo?
- Meu bem, nós criamos nossos meninos para a liberdade. Não sabemos agora se ele voltará ou não. Se ele encontrar lá, para onde vai, liberdade, por ser um homem livre voltará.
- Mas ele perder sua liberdade? Se for preso? Escravizado?
- Isso só Deus pode saber…
A mulher deixou-se abraçar pelo marido e chorou por mais um tempo. Ambos balbuciaram uma oração entregando o destino do filho nas mãos de Deus.
Antes de adormecerem, já mais consolada, a mulher falou ao marido como num tom oração:
- Se ele por acaso perder sua liberdade ou vê-la ameaçada, certamente votará aqui para reencontrá-la.
(Enquanto isso o filho mais velho, exausto, terminava de recolher o gado no curral…)
“Liberdade é uma palavra que o sonho humano alimenta, não há ninguém que explique e ninguém que não entenda.”
Cecília Meireles
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