Já faz algum tempo que um amigo e irmão na fé presenteou-me com alguns livros. Ele os havia ganhado de um ex-pastor, contudo, não se interessando pelo tipo de literatura (livros teológicos) decidiu abrir mão deles. Logo que os recebi, dediquei-me, ainda que superficialmente, a vasculhar um por um. Logicamente, alguns títulos chamaram mais a minha atenção do que outros. Entretanto, todos me pareciam muito úteis e de prazerosa leitura.
Recordo-me bem que dentre os livros que pouco chamaram minha atenção estava um de capa muito esdrúxula (um desenho bizarro de um homem na fogueira) e de edição gráfica simples, pois fora datilografado. Com uma folheada breve, percebi que se tratava de relatos acerca de acontecimentos ocorridos no seio da Igreja Presbiteriana do Brasil, no período de ditadura que assolou nossa nação. Eu já havia ouvido pequenos comentários, em pregações, sobre a forma com que determinadas denominações evangélicas se portaram durante este período: talvez o mais tenebroso da nossa história. Porém ainda não havia me dedicado a estudar sobre.
Foi, então, assistindo o filme brasileiro Olga que me interessei em voltar a folhear as páginas de tal livro. Não sei ao certo o motivo deste interesse, mas, ao assistir sobre a luta daquela mulher, me veio à mente a lembrança deste livro e de seus relatos. Pode ser pela proximidade de data entre os acontecimentos tratados no filme e os relatados no livro (arrisco-me a dizer que uma das causas, também, pode ser o fato de que hoje sou membro de uma Igreja Presbiteriana em minha cidade).
O livro é de autoria do pastor presbiteriano Rev. João Dias de Araújo, e se chama Inquisição sem fogueiras¹. Como já mencionado, ele trata, especificamente, dos fatos ocorridos dentro da Igreja Presbiteriana do Brasil.
Reverendo João Dias relata corajosamente o que chamou de inquisitorialismo. Durante um longo período a cúpula da liderança da IPB apoiou o regime ditatorial dos militares, perseguindo severamente membros, seminaristas, presbíteros e pastores que se envolvessem com questões referentes a “justiça social e denúncia dos males estruturais da realidade brasileira.” Outras razões dignas de reprovação eram o ecumenismo e qualquer tipo de pensamento que se alinhasse com a ideologia marxista. A título de exemplificação, vale mencionar que foi expressamente vedada a participação de padres nos púlpitos presbiterianos (ainda que em silêncio); e a participação dos membros da IPB como testemunhas em casamentos realizados pela igreja católica, dentre outras coisas mais. João Dias ainda menciona o fato de que juristas presbiterianos colaboram na confecção de alguns dos atos institucionais, a favor da ditadura.
Segundo os relatos, não poucos ministros foram despojados (expulsos do ministério), e outros acusados pela Igreja de serem subversivos; como, por exemplo, Rubem Alves, que durante muitos anos foi pastor presbiteriano na cidade de Lavras/MG, e também já foi considerado um dos maiores teólogos brasileiros. Depois de ser acusado pela IPB como subversivo, decidiu retirar-se do ministério escrevendo uma carta na qual faz menção à insatisfação em relação aomodus operandi da denominação. O início e fim de sua carta são marcados pelas palavras:“Sempre entendi que o evangelho é um chamado a liberdade. ... Não encontro a liberdade na IPB. É hora, portanto, de buscar a comunidade do Espírito, fora dela”.
É enganosa, entretanto, a idéia de que tais fatos restringiram-se à IPB. Na verdade, o apoio dos conservadores protestantes ao Regime Militar foi um fenômeno que abrangeu grande parte das denominações protestantes brasileiras. Gedeon Alencar em seu livro Protestantismo Tupiniquim (pág. 95), ao citar escrito do sociólogo Paul Freston, faz menção a que um famoso líder Batista, Fanini, prestou apoio à Ditadura Militar por conveniência da concessão de um programa de TV². Intriga-me, no entanto, o fato de que tão raros líderes façam menção a este tempo obscuro do protestantismo brasileiro. Pode-se contar nos dedos os que, de uma forma ou de outra, têm mencionado em suas palestras ou em livros tais fatos. Isso talvez se deva a falta de coragem, ou , quem sabe, falta de interesse de colocar o dedo nas nossas feridas ou pouca compreensão da importância dos fatos. Apesar disso, é compreensível que não haja muitos trabalhos com ênfase especial neste assunto, afinal ele é contemporâneo demais; e quanto mais próximos estamos de um acontecimento histórico mais difícil a sua compreensão.
Não obstante, entendo ser de extrema importância olhar para este passado, ainda que nos doa saber que em nosso meio ocorreram males como estes, dignos de repúdio. A importância de olhar para trás é devido a algo simples: não repetir ou permitir que se repitam atrocidades como as ocorridas. O passado é como um mapa que pode tanto nos mostrar os caminhos que devemos continuar a percorrer como, também, aqueles dos quais devemos nos desviar.
Infelizmente a memória do brasileiro é bem curta, e a dos evangélicos parece ser mais curta ainda, talvez nem exista. Por isso mesmo trago esta reflexão, a fim de que nos voltemos para nosso passado, e isso responsavelmente. Pois é fácil olhar para trás e dizer que nada tivemos com isso. Caso alguém o diga, vale perguntar: qual seria a nossa atitude se fôssemos participantes desse período histórico?
Posso responder apenas por mim. E, com sinceridade, não sei dizer como teria agido, apenas como quero agir nestes dias de minha vida: quero ter coragem para sustentar aquilo que creio, haja o que houver, e ser fiel ao evangelho e à minha consciência, sempre!
1 - A edição do livro que tenho em mãos foi lançada pelo Instituto Superior de Estudos da Religião, em 1985. Creio que somente deva ser encontrado em sebos.
2 - Alencar, Gedeon Freire. Protestantismo tupiniquim: hipóteses da (não) contribuição evangélica à cultura brasileira. São Paulo: Arte Editorial, 2005.
Artigo escrito por Beto em 12.09.2007 para Cidadania Cristã
Olha, o Rubem foi pastor aqui em Lavras de 1962 a 1967. Na epoca não tinha essas idéias de hoje. Já era bem voltado para o enfoque social da igreja, o que naqueles tempos de AI5 não era muito bem visto, inclusive pela cúpula da IPB. Foi denunciado como subversivo, teve de "arrumar" um curso para fazer nos EUA. Sempre foi muito amigo de meu pessoal. (depoimento de um amgio de Lavras)
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ResponderExcluirRoger,
ResponderExcluirGostaria de indicar a leitura do livro Pensamento social e político no protestanismo brasileiro, de Silas Luiz de Souza (meu professor no Mackenzie e presbiteriano).
Ele analisa o posicionamento da IPB, começando no início do século XX e indo até o golpe militar.
O que mais chamou minha atenção foi a inversão de papéis ao longo da história: de uma denominação (assim como outras evangélicas) que estimulava a liberdade (religiosa e política) terminou em uma denominação fechada e que apoiou as barbaridades do regime militar.
Não está no livro e é uma opinião pessoal. Na minha convivência no Mackenzie vejo que esse tipo de "caça às bruxas" ainda é sentido dentro da igreja.
Abraços!
Roger, reflexões como esta nos ajudam e nos encorajam a buscar permanentemente a verdade dos fatos e elas nos ensinam continuamente que somos um povo santo e pecador ao mesmo tempo. Por isto TAMBÉM PRECISAMOS SER PACIENTES E TOLERANTES UNS COM OS OUTROS, perdoando-nos mutuamente por nossos erros e fraquezas. Isto é prática da misericórdia ensinada continuamente por Jesus. Gostei muito. Valeu! Parabéns! Augusto
ResponderExcluirÉ, o Beto, foi muito feliz em escrever esse artigo!
ResponderExcluirInfelizmente o protestantismo no Brasil tem sua história marcado pelo conservadorismo e por isso é muito reacionário.
Mas temos sempre a chance de construirmos novos tempos.
Oi Roger,
ResponderExcluirnão é fácil tratar desse assunto. Há um certo pudor em torno dele, bem, pelo menos é o que ocorre com quem ama a IPB, é o que ocorre comigo. A IPB é a minha igreja. Estão em jogo, também, desde aquele tempo, antagonismos ideológicos que se estendem até nossos dias e nossos blogs, adoecendo o já tão fragmentado evangelicalismo brasileiro.
Só vale a pena mexer na ferida (quem dera fosse uma cicatriz!) se for para trazer alguma edificação e cura.
Um abraço.
Raquel
Olá tudo bem? Confesso que faz algum tempo que este assunto me inquieta.
ResponderExcluirTenho a sensação que a igreja evangélica brasileira tornou os seus membros docéis para a dominação.
Um grande abraço!
Mais uma coisa...
ResponderExcluirNa minha maneira de encarar o Brasil, sempre achei que a Ditadura nos roubou figuras que tinham tudo pra contribuir com a sociedade de forma positiva: Cabeças pensantes, formadores de opnião, pessoas com garra e ideal.
A história de Olga é algo que comove mesmo a gente.
Pelo enredo do seu texto, aqui, a gente vê como a igreja também dançou nessa história toda.
Para a cristandade daquela época sobrou escolher entre os pobres juntamente com um pacote ideológico ateísta ou pela burguesia dando assim um aval a tirania do capital. Algumas exceções raríssimas conseguiram, para o bem geral da nação desenvolver a missão integral sem se comprometer ideológicamente. Assim pelo menos entendo.
Abçs,
Não sei nem bem o que escrever, pois sou filha de pastor evangélico,Wilson Nóbrega Lício,já falecido, que pastoreou por mais de 45 anos na IPB e que, apesar de lá pastorear, falava destes absurdos, que foram claros na época do "Boanergimo", se posso falar assim, que tinha uma visão estreita e de extrema direita...
ResponderExcluirTambém sou sobrinha do já falecido rev. Mário Lício, que era um pastor mais esquerdista, assim como meu pai (um pouco menos extremista, se dizia "centro avante")...
Minha irmã mais velha foi presa, junto com seu marido nesta época negra da nossa história, tendo até hoje sequelas emocionais e mentais profundas, o que a levou a nunca mais ter um vida normal...
Ao mesmo tempo, convivi com um pastor de extrema direita, que era pai de uma amiga muito querida minha, sendo ele também muito querido, e que condenava as atitudes "socialistas" de outros pastores...
Isto sem falar que também sou sobrinha do falecido e famoso rev. Miguel Rizzo Jr
Haja "salada mista política e teológica" em família...
E com o tempo, consegui enxergar que, cada um, à sua maneira, estava agindo da forma que achava que Deus requeria de si; em outras palavras, de acordo com a sua consciência...
Para mim, foi muito difícil administrar estes sentimentos tão contraditórios... pois tinha 16-17 anos...
Então, Deus que os julgue, pois creio que também na IPB teve uma ditadura por mais de 30 anos...
Só espero que sirva de lição, mesmo que um tanto tardia, para que este tipo de perseguição dentro de uma instituição tão enraizada e respeitada, deixe de acontecer, ou seja, nunca mais se repita!!!
Daria para eu escrever um pequeno livro das minhas memórias desta época, muito triste, e ainda doloroso, muito doloroso...
Sábado, 17 Janeiro, 2009
Ah! E eu ainda era amiga da filha do rev. Boanerges, que conheci sem saber quem era... veja que saia justa!!!
ResponderExcluirÉ, gente, esse tema dá mesmo muito pano para manga.
ResponderExcluirMas o importante é isso: a reflexão, o interesse em ir às fontes e pesquisar mais a fim de saber mais, e isso com o interesse de denunciar o que não presta e praticar o amor de Jesus onde quer que se esteja.
Abração forte a todos.
Humberto Ramos
Parabéns pelo excelente artigo. Parabéns pelo esforço em resgatar a história.
ResponderExcluirEu e Douglas Rezende conversamos recentemente sobre a reação (ou a falta) evangélica no período da ditadura militar. Brevemente se transformará em podcast no site Renovatio Café. Confiram em breve.
Paz
Gustavo K-fé
Estava fazendo minhas rotineiras pesquisas quando vi em meu mail a indicação deste Blog. Nas pesquisas novamente percebi a massa de cristãos que se deixam inebriar pela vista que se tem do alto do Pináculo do Templo. Mas graças a Deus, neste blog, novamente me dei conta de que Jesus morreu por andar nas calçadas que circundavam o Templo. A graça que veio dos céus, veio para os que estavam em baixo, não em cima do templo.
ResponderExcluirque o Poder da Verdade nos motive a continuar afirmando o Reino em que a verdade do poder é destronada.
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Estou muito felis de ver esse artigo, porque as vezes me sinto solitária enquanto evangélica ao discutir essas coisas. Amei o final do artigo, tb não sei como reajeria na época, isso ia depender muito da formação não apenas religiosa mas política e ideológica que eu tivesse, pq temos que admitir que não é apenas a formação religiosa que nos influencia e que esta também é condicionada por ideologias socioeconômicas e por carcterísticas culturais, por isso que é difícil encontrar culpados, muitos pensavam está acertando. Precisamos admitir que muitos evangélicos também fazem parte da grande massa manipulável e alienada e pensar em como podemos ampliar a revelação dessas verdades, elas ainda estão muito encoberdas. Precisamos pedir perdão a Deus e a nossa nação, precisamos pedir verdadeiramente o direcionamento de Deus. O meu coração se afinge em ver um senso comum imperando no meio evangélico, em ver opiniões tão superficiais imperndo no seio de nossas igrejas, acreditamos que conseguimos discernir todas as coisas, mas isso não me parece verdade, mas a Palavra garante que conseguimos, então o que está acontecendo?
ResponderExcluirQuero conversar mais sobre isso, quero encontrar respostas em todos os níveis, sociais, ecnômicas, culturais e espirituais.
Louvo e agradeço a Deus por isso, pq Ele sabe da minha aflição.
Tenho esse livro Inquisição sem fogueiras, em pdf. Recomendo.
ResponderExcluirAo procurar o livro inquisição sem fogueira me deparei com esse blog, o que me fez recordar dos meus idos tempos quando seminarista a oportunidade de conhecer Ruben Alves e depois de muitos anos trabalhando por aí como ministro, somente depois de quase 25 anos ter a oportunidade de completar meus estudos, observada a dificuldade de querer entrar nesses meandros da história da igreja. A meu ver, um ver de dentro, continua quase tudo da mesma forma, as denominações reformadas parecem caminhar sempre do lado dos que estão no poder, numa aparente neutralidade que na verdade é um mito. Conclui meu mestrado em C da Religião no Mackenzie e acabei por fazer uma pesquisa que não pretendia há princípio. Transitei por essas décadas analisando a relação entre educação e teologia, particularmente Teologia da Libertação e Pedagogia da Libertação, quando conclui que os responsáveis reais pela Teologia da Libertação foram presbiterianos, os católicos pegaram a rabeira do caminhão da teologia que buscava libertar a teologia por um lado e por outro os oprimidos em relação à seus opressores.Dentre eles. Richard Shaull com sua Teologia da Revolução e Ruben Alves com a Da Esperança... A briga teológica das décadas de 1060 e 1970: conservadores contra teólogos liberais e da libertação, os primeiros querendo a libertação da teologia e os seguintes a libertação dos oprimidos confundidos em seus interesses diversos.
ResponderExcluirPubliquei minha pesquisa que gostaria de compartilhar com que se interesse por ler e emitir suas impressões: e mail: eduardosimoesm@yahoo.com.br ou simoes.msrtins@uol.com.br
LINK: http://www.editorareflexao.com.br/Site.aspx/Produto/224-PAULO-FREIRE-E-A-TEOLOGIA-DA-LIBERTACAO-APROXIMACOES?store=1
Um grande abraço a todos, especialmente ao dono da do blog
Prof. ms Eduardo