"Dizia Kierkegaard que não há ninguém mais astucioso do que o defunto. Não dispõe de nenhuma arma contra nós; entretanto nos força a nos revelarmos a nós mesmos, pela conduta que temos diante dele. O morto não é um objeto real, ensina-nos o filósofo: é apenas uma oportunidade de manifestar o que existe no vivo em contato com ele. É um teste à nossa espera: um teste de amor. Porque (ainda na lição de Kierkegaard) pensar nos mortos é o ato de amor mais desinteressado, mais livre e mais fiel, de todos que possamos conceber. Mais desinteressado, porque nem mesmo o nutre essa esperança de recompensa que os pais depositam inconscientemente no amor ao filho que vai nascer ou já nasceu: não há recompensa nenhuma a esperar de um morto; mais livre, porque o morto não está aí para nos obrigar a qualquer gesto ou sentimento, como a criança que chora, ou o pobre que nos expõe sua pobreza: podemos ingnorá-lo à vontade; e mais fiel, porque mudamos continuamente de gostos e ilusões, mas ele não muda nunca, e amá-lo sempre com o mesmo amor é uma vitória sobre nossa instabilidade sentimental."
Carlos Drummond de Andrade em Os Mortos
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