Olho para o termômetro, 8 graus abaixo de zero. Ontem nevou. Logo que o sol saiu fiz um passeio, pela tardinha, para constatar a beleza do inverno alemão.
Enquanto o vento vindo do Canal Europa (uma via fluvial que liga o Danúbio ao Meno) me empurra de volta para o calor de minha casa, sou arremessado em meus pensamentos ao litoral capixaba, a quatro décadas atrás.
O sol brasileiro brilha intenso na linha do horizonte da cidade de Guarapari. O mar respira seu próprio frescor e promete ser o palco de boas e infindáveis farras.
A porta para aquele universo raro e fantástico eram muitas: uma vemaguete, uma variante azul, um ónibus da Itapemirim ou um da viação São Geraldo.
A mãe colocava um lenço no cabelo, juntava singelamente em sua frasqueira alguns objetos de primeiro socorros, seus produtos de beleza corriqueiros e outras bugigangas femininas dos anos 70.
A comida para a viagem, ovos cozidos, pão com frango assado e outras farofas do gênero eram guardados em uma caixa de isopor, que se impregnava com aquele aroma pela vida inteira.
A empreitada deveria ser iniciada pela madrugada na capital mineira. Até o dia da viagem, o tempo era contado em milésimos de segundo. Com quase um mês de antecedência a primeira pergunta feita a cada manhã era: Pai, quantos dias ainda faltam para viajarmos para Guarapari? As crianças pensavam que esse dia nunca iria chegar. Mas chegava. Não sem euforia, não sem stress.
Tudo era posto no porta malas do carro, esteiras de palha, pazinhas e baldinhos e uma câmera fotográfica e inclusive uma câmara de ar preta que serviria de boia. As crianças intuíam que teriam que se abster nas próximas duas semanas de feijão, pois a panela de pressão não ia; de televisão, que ainda era um objeto de luxo e quase raro; e do celular, que naquele tempo só existia no Star Trek.
Todo mundo lá dentro, o pai dava a primeira acelerada no motor. A espera daqueles infindáveis 30 dias, agora já não pareciam mais nada, em comparação com as quase eternas 10 horas de travessia da Serra do Caparaó rumo ao oceano.
Os dezembros de mil novecentos e setenta e tantos eram sempre bem chuvosos. Para as crianças não existia Golpe, Renúncias, Partidos ou Militares no poder, nem toda confusão do mundo adulto.
A estrada esburacada, com suas placas e símbolos enigmáticos não parecia ser num primeiro momento ameaçadora. Depois ela mostraria sua verdadeira face com seus deslizes de barrancos e carretas desgovernadas. Aos poucos uma a uma, as cidades do Vale do Aço eram vencidas, com seus curiosos teleféricos de minério. Tudo parecia novo e magicamente colocado ali por uma mão gigante.
Uma primeira parada era feita para matar a fome. Outra para visitar um parente. Outra para reabastecer e a jornada prosseguia. Com muitas cantigas, muitas dormidas e muito enjoo com tantas curvas.
Talvez a grande fronteira que dividia o “estarem saindo” do “estarem chegando” era a passagem pela Pedra da Lagartixa ou Pedra azul. Então as crianças eram postas num pequeno campeonato de quem era o primeiro a avistar o mar.
O relevo já plano dava-lhes a sensação de que a cada curva apareceria o mar. Mas não era nessa, nem naquela, nem naquela próxima. Mas numa hora, ele dava as caras e alguém gritava triunfante: Eu vi, eu vi!
Parecia que o mar já estava esperando aqueles meninos e meninas. Ele as saudava com seu cheiro salgado, que as faziam delirar de alegria. Agora a competição era outra, de quem seria o primeiro a entrar no mar.
Era só mais uma dentre tantas competições que seriam repetidas, inventadas e brincadas naqueles dias. Eram brincadeiras que não tinham fim. Tudo era lúdico, diferente e uma aventura a mais, até o comprar o pão pela manhã, fazer o café, passear pelo calçadão, ir na feira, jogar fliperama, tomar um sorvete… Tudo era motivo de farra e descontração. O que dizer então de brincar com a areia e a água do mar?
Existia um certo fascínio em ir cavando um buraco e ver que a poucos palmos a fundo apareceria água. Fazer uma fortaleza de areia era o inicio solitário de um grande projeto arquitetônico que sempre terminava com a adesão de todos os irmãos e até dos pais. No fim, evidentemente que o mar mesmo tratava de em poucas horas engolir aquela obra faraônica e deixar o relevo da praia novamente em ordem.
Se a manhã era ocupada com o mar: passeios de pedalinho, pegar peixinhos no baldinho, juntar conchinhas, atravessar a nado de uma praia até a outra, mergulhar do calhau, e etc.; a tarde, era o momento das excursões. Ir conhecer outras praias e cidades da redondeza, ver onde Anchieta havia pregado para os índios, visitar vilas de pescadores e encontrar as estrelas do mar que eles deixavam pelas praias após suas pescarias.
Aquelas férias de verão eram tão mágicas, que só poderiam mesmo acontecer com o Natal. Com o presépio, com uma igreja em forma de barquinho, com os presentes que Papai Noel trazia.
E aquilo tudo e muito mais aquelas cinco crianças mineiras viviam.
Elas viviam e guardavam bem em seus ingênuos corações, de uma forma tão segura e secreta, envolta numa densa camada de alegria, que nem mesmo depois de quatro décadas o frio do inverno alemão poderia sequer pensar em apagar.
2 comentários:
Como bem cantou Harry Nilsson: "Remember, life is just a memory; remember, close your eyes and you can see..."
Ah, a praia dos anos 70. Que saudade!
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