Se vivendo neste mundo
tenebroso eu não sou pobre de espírito, não choro, não sou manso e não tenho
fome de justiça eu não sou um discípulo de Cristo. Não sou humano, como Cristo
foi. Pois Cristo também experimentou todas essas coisas. Deus permitiu-se ser
humano, para permitir que nos tornemos divinos: sermos misericordiosos (conosco
mesmo e com nosso próximo); termos um coração puro (em nós e frente a nosso
próximo); sermos pacificadores (frente a nossos conflitos interiores e em meio
a uma sociedade repleta de conflitos interpessoais e de grupos); e a nobreza de
sermos perseguidos por causa da causa nobre da justiça e do evangelho.
As quatro primeiras bem aventuranças estão bem
próximas da grandeza de Deus: o Reino de Deus, o consolo de Deus, a terra de Deus
e os frutos justos dessa terra prometida (que saciam a fome). Quem possui estas
coisas é bem aventurado. E quem as possui? São os pobres, os que choram, os
mansos e os que tem fome. Em uma sentença: os que se relacionam com Deus e O
possuem como seu Deus. São os que necessitam desesperadamente e exclusivamente
dele, só dele e de nada mais.
As próximas quatro bem aventuranças quando
comparadas com as quatro primeiras mostram ter grandezas quase independentes.
Embora também gravitem em torno da magnitude de Deus, elas parecem possuir cada
uma seu universo próprio: os universos da misericórdia, da santidade, da
filiação divina e novamente do Reino Celestial. E quem povoa estes universos?
São os misericordiosos, os intrinsicamente puros, os pacificadores e os
perseguidos.
Olhemos com mais atenção esse primeiro universo, o
da misericórdia.
A bem aventurança da misericórdia é a maior de
todas pois reflete em cheio o caráter de Deus. Todavia os misericordiosos só
são bem aventurados porque também alcançarão a tão necessitada misericórdia. Ou
seja, ser misericordioso e não necessitar e nem receber a misericórdia só é
arrogância. É negar o caráter da humildade de espírito expresso na primeira bem
aventurança. Por isso a misericórdia deve ser precedida necessariamente pela
fome e pela sede de justiça. Os misericordiosos não são ocasionalmente movidos
por um simples sentimento de dó por quem está sofrendo, nem muito menos só pelo
ato de demonstrar empatia ao resgatar alguém do seu sofrimento. Os
misericordiosos são constantemente impulsionados por essa necessidade básica de
fome e sede de justiça.
A misericórdia não deriva necessariamente de uma
vida aparentemente religiosa. A misericórdia, sim, aos olhos de Deus, é a vida
religiosa e não as atividades, as programações ou obrigações impostas pela
estrutura "religiosa". Jesus contou-nos uma parábola, que ficou
conhecida como a do Bom Samaritano. Ali o Samaritano, em contraste com outros
dois homens religiosos, usou de misericórdia para com um outro caído vítima nas
mãos de salteadores. O propósito da parábola foi responder à pergunta feita por
um doutor da lei: quem é o meu próximo (a quem devo amar como a mim mesmo)? Ao
qual Jesus deixa transparecer que nosso próximo é a pessoa que usa de
misericórdia para conosco. No caso da parábola essa pessoa a ser amada seria um
samaritano – alguém vítima de preconceito pelo povo judeu. Quais pessoas tem
usado de misericórdia para comigo e me socorrido em tempos de crise? A essa
pessoa, minha próxima, devo o meu amor. E quantas vezes não somos ingratos,
justamente com quem nos estende a mão e está mais próximo da gente na hora de
aflição?
Como em todo o Sermão do Monte, também nas bem
aventuranças as consequências são bem práticas. Nas quatro primeiras beatitudes
a prática está em aquietar-se, em puxar o freio de mão, em baixar a bola, em
assumir a pequenez, em parar e deixar que Deus, e só Deus, aja em nosso favor:
nos dando o reino, nos consolando, nos dando a terra e saciando nossa fome e
sede. Em contrapartida, nas demais bem aventuranças seguintes a prática sai da
passividade de quem está recebendo e vai ativamente ao encontro do outro
necessitado para compartilharmos aquilo que já recebemos.
Vocês, misericordiosos – que se dispõe a estender
a mão, que saem de sua zona de conforto para ajudar aqueles que estão caídos no
caminho – também alcançarão misericórdia, vocês são bem aventurados. É Cristo quem está falando.
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