por Marcos Monteiro
Gostaria de escrever como quem preenche parênteses (pura obrigação de parar para significar o que não comporta significação), sair da perplexidade do silêncio para a perplexidade das palavras. Robinson Cavalcanti é um parêntese complexo na minha vida e a sua morte é trágica demais, daquelas que qualquer comentário é pura insuficiência. Morte apenas para ser doída, em silêncio ou não, parêntese devastador.
Convivi com Robinson em muitos momentos, especialmente no seu ciclo profético. Nesses últimos tempos não me sentia confortável com suas posturas, talvez problema meu que não gosto de bispos, como lhe disse bem antes de imaginar que um dia o próprio assumiria um episcopado. Talvez eu tenha problemas com autoridade e seus símbolos, mas acho que tornado “Dom”, ele também causou dores e sofrimentos evitáveis, distribuindo uma certa quota de problemas ... Coisas da existência.
Quando escreverem sobre Robinson (e claro que a sua biografia precisa ser escrita) delimitarão (provavelmente) três fases de sua vida. O primeiro ciclo, o apologético, escrevendo diariamente no Diário de Pernambuco, argumentos inteligentes, propiciando o diálogo entre fé e sociedade, na defesa do cristianismo, especialmente o protestante e evangélico. Uma fase quase fundamentalista, mas brilhante como sempre.
O segundo ciclo, o ciclo profético, articulado internacionalmente com a Fraternidade Teológica Latino-Americana e com o Movimento de Lausanne, caminho célere para se tornar uma voz crítica dentro do movimento evangélico, em duas direções: política e sexualidade. A sua interlocução através do marxismo, ferramenta de análise preferida, o fez caminhar de uma postura de centro para uma esquerda cada vez mais radical, no melhor sentido da palavra, tomando a vida pela raiz. Lembro de sua perplexidade quando comentou comigo que se preparara para dialogar com um mundo politizado, revolucionário e socialista, e se deparou repentinamente com um mundo esotérico. Politicamente manteve-se sempre revolucionário e socialista.
O terceiro ciclo gostaria de colocar entre parênteses e sempre pensei que seria assim na realidade, um dia Robinson deixaria de ser o arauto das instituições e defensor da ortodoxia (tarefas que não pareciam ser as dele) e voltaria às provocações proféticas instigantes e instauradoras de vocações. Mas veio a violência da morte, da forma mais trágica possível, trazendo a figura de Eduardo, seu filho.
Muito cedo perdi qualquer contato com esse filho, portanto lembro apenas de uma criança de cinco anos de idade, Dudu, criança como qualquer criança, filho como qualquer filho, com pai e mãe, família privilegiada. Tornou-se para mim um enigmático parêntese, treze anos vividos nos Estados Unidos, jovem envolvido em uma camada de ódio incompreensível. Como aprendeu a odiar não sei, somente lembro de Mandela nos alertando a cuidar das crianças que são capazes de aprender a odiar, mas também a amar. Sobrevivente da tragédia, parece-me destinado a viver um tipo de parêntese vivido por muita gente, nos limites do sistema penal, carregando nas costas a tatuagem ou o carimbo de assassino.
Então, passo a lembrar de Miriam, seu nome uma das corruptelas do nome de Maria, nome comum na Palestina de Jesus, nome comum no Nordeste do Brasil. Como a Maria bíblica, Miriam parece ter vivido a sua vida entre parênteses, por opção. Inteligente, sensível e eficiente, rejeitou uma chefia oferecida por Visão Mundial, resolvendo assumir um sistema mais cotidiano, preenchendo esse complicado parêntese da vida privada, tornando-se acima de tudo mãe. Mãe de Robinson, de Dudu, de outras filhas, e de muitas crianças recolhidas em maternidades e enviadas para adoção. Miriam era uma espécie de protetora (minha herança protestante me impede de dizer “santa protetora”) de todas as crianças abandonadas.
As descrições da última cena da tragédia apontam para uma mãe que se interpõe entre a lâmina da faca do filho e o corpo do marido, esse mesmo que parecia nos últimos tempos também uma criança abandonada. Morreu, segundo um grande amigo, entre os dois grandes amores de sua vida. Como Jesus, morreu uma morte que não lhe pertencia e isso nos traz talvez a maior de todas as questões. A morte se apresenta muitas vezes como a grande violência que coloca a vida entre parênteses. Mas a nossa esperança acredita que a morte é que é o parênteses.
A vida continua de algum modo, seja como memória, saudade, lição e especialmente como esperança de misteriosos reencontros e preenchimento de sentido. Miriam e Robinson, Robinson e Miriam, vidas que colocam a morte entre parênteses.
Feira de Santana, 02 de março de 2012
2 comentários:
Ainda fico sem acreditar no que aconteceu. Minha primeira reação ao ler na Ultimato o acontecido foi "Mentira! Engano!"... Não sei o que dizer, não sei se conseguiria escrever um texto sobre ele. Conheci o Robinson há pouco mais de 2 anos e, além de seus artigos naquela revista, seu livro "a utopia possível - em busca de um cristianismo integral" foi uma espécie de pérola pra mim no final de 2010. Muita coisa do livro não faz mais sentido pra mim, mas lembro-me da humanidade dele quando contava sobre suas "fases na fé". Era um ser humano. Foi marcante na minha vida!
Grande texto, obrigado por partilhar!
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