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domingo, 13 de setembro de 2015

A mulher síria, seus cachorrinhos e meus sonhos

Sei que há muito romantismo no que direi nas próximas linhas e muito pouca conexão com a realidade. (Sinto-me no dever de alertá-lo ou alertá-la antes que prossigamos nessa conversa). Sou um sonhador. Não do tipo visionário, capaz de abrir caminhos para outros. Apenas gosto de dar asas à imaginação. Estou consciente da doença, então calo-me, para não ser hospitalizado.

Mas hoje resolvi falar. Talvez pela mesma razão – não ser hospitalizado. São imagens de crianças afogadas, de caixões no mediterrâneo de pessoas asfixiadas em caminhões na Áustria…

Moro há quinze anos na Alemanha. Não é tanto tempo assim, mas também não é pouco. Estou convivendo bem de perto com a questão dos refugiados. E começo a sonhar.

Mas primeiro o pesadelo. Um pesadelo alheio, que começa a adentrar nossos mundos.

Longe do Brasil, acostuma-se a dormir tranquilamente. Não há o assombro da criminalidade absurda. Das janelas com grades. Da paranoia do sequestro, do assalto, do assassinato e todas as formas de violência urbana que apavoram o cidadão de bem no Brasil.

Mas não é só a tranquilidade da paz. Dos índices menores de criminalidade. Há uma paz de consciência por não se estar convivendo diária e diretamente com a miséria crônica. Nunca me esquecerei de um colega universitário (classe média alta) reclamando da criancinha pedinte que estraga seu fim de semana num barzinho. Sempre seremos mais simpáticos com a criancinha carente do que com “o filhinho de papai”; mas entendemos bem a chateação que é o flanelinha, a campainha tocando por um “qualquer coisa serve”, a escadaria da igreja lotada de aleijados, do sinal de trânsito cheio de moleques, a cola de sapateiro sendo cheirada nas calçadas do centro, os bairro mais pobres caindo aos pedaços, as favelas transbordando esgotos, as enchentes arrastando barracos, as filas quilométricas dos hospitais, as greves intermináveis das escolas…

Confesso: já cheguei a sonhar que o Brasil, um dia, não muito distante, mudaria para melhor. Acho que foi quando era jovem... Quando me tornei crente. Sim, naquela época cheguei a imaginar que se o povo brasileiro deixasse suas crendices, suas superstições, suas malandragens, seus confortos e luxos e começasse a se voltar para Deus, para o que é justo e verdadeiro que o país prosperaria. Na linguagem protestante acreditei que o Brasil poderia experimentar um avivamento. Talvez alimente ainda esse sonho, com migalhas, para que ele não morra de vez, mas ele deve ter ficado bem escondidinho em algum canto de minha imaginação ao lado de outras utopias.

Uma delas, bem recente, diz respeito à avalanche de refugiados que nesse momento está escorrendo pelos corredores dos Balcãs e se derramando nas estações centrais alemãs.

Os noticiários só falam no assunto. Muito tem sido debatido. Na verdade não é um tema novo. Mas agora assumiu proporções gigantescas. O que fazer? Pode ser feito algo? Deve-se fazer algo? Ou será que não deveria ser feito nada, banir essa gente? Ou acolhê-los de braços escancarados?

A atitude da chanceler alemã de “abrir as fronteiras” para que os refugiados entrem já foi criticada por parceiros políticos como uma falha. Não há estrutura para receber essa massa humana. Dizem que nas redes sociais de meio mundo árabe espalha-se a notícia (falsa) de que a “mother Merkel” está dando casa, comida, trabalho e roupa lavada para quem chegar.

É bom lembrar que a Alemanha (e Áustria) mantém um registro de todos os seus habitantes. Toda pessoa que mora aqui tem que estar cadastrada em sua cidade e região. Se se mudar, tem que registrar-se novamente no novo endereço. Sem esse documento de registro não se consegue nada. Então a primeira preocupação dos dirigentes é registrar o refugiado que chega. É evitar a todo custo a informalidade, o caos, o descontrole.

Uma vez registrado, o refugiado recebe o asilo por razões cabíveis e legalmente aceitas. E o que fazer com os imigrantes da antiga Iugoslávia que não tem mais direito ao asilo? E talvez tantos outros que não se encaixam exatamente nos casos cobertos pela lei? Evidentemente que serão deportados, para que outros que chegam de regiões de crise como a Síria possam ser socorridos.

Mas se meio mundo se encontra em crise, como fazer todo esse exame e julgamento de forma efetiva e rápida? Essa é a segunda preocupação do alemão, que o processo de pedido de asilo seja acelerado.

Questões administrativas a parte, restam as questões práticas da vida. Essa gente vai viver de quê? Quanto tempo levará até que eles aprendam o idioma e se integrem ao mercado de trabalho e à sociedade? Quem pagará a conta para moradia, alimentação e vestuário. E obviamente o refugiado também tem o seu celular, muitos fumam, bebem e tudo isso custa dinheiro…

Pessoas pobres são diferentes das pessoas ricas. Elas não raramente estão doentes, não raramente tem muitos filhos e não raramente as famílias estão fragmentadas e psicologicamente dilaceradas. Volto a falar saúde física e mental custa, no mínimo o seguro de saúde, criança também custa. Pessoas pobres geralmente geram custos, e as ricas não sabem o que fazer com suas riquezas.

Quando Jesus passou por essa terra, em solos palestinos, não encontrou um mundo de flores. Certamente em muitos aspectos – se não em todos – a situação era bem pior do que se vê hoje. Fome, guerras, mortalidade, doenças, criminalidade, opressão.

As multidões o seguiam, pois logo perceberam que ali estava a solução para todos os seus problemas. Curas, milagres, libertação: salvação!

A demanda para Jesus era enorme. E ele, parece, estabeleceu para si mesmo um limite: Israel. Não saiu pelo mundo a fora, mas em seus três anos de trabalho religioso ficou somente em solo israelita. Atendia os judeus e os samaritanos. Em seus lábios “eu vim para as ovelhas perdidas da casa de Israel”.

Mas de repente chega uma mulher síria gritando socorro (para sermos exatos ela possuía tripla cidadania grega-siro-fenícia). Ela gritava insistentemente atrás de Jesus, ao ponto de os próprios discípulos já não aguentarem a situação e pedirem a Jesus que fizesse algo.

Jesus, de forma não muito caridosa, disse-lhe que não poderia tirar o pão dos filhos para dar aos cachorrinhos. Talvez essa seria a hora em que muito de nós teríamos recolhido o pouco de dignidade que nos resta e teria deixado o judeu em paz com sua gente, e teríamos voltado para casa com nosso problema debaixo do braço.

Mas essa mulher síria foi diferente. Estrangeira, vivendo em Israel, estava acostumada a todo tipo de preconceito e humilhação. Certamente ela percebeu nas palavras de Jesus uma deixa de carinho, talvez pelo tom de voz, ou pela expressão facial do Messias. Ela sabia, pela fé, que sua esperança estava ali, naquele homem-deus. E a chance não seria desperdiçada. “Senhor, até os cachorrinhos comem das migalhas…”

O apelo de um coração quebrantado deixa Deus sem resistências. Jesus a despede com a graça concedida – a libertação do demônio que atormentava sua filhinha. Posso imaginar as lágrimas e o sorriso daquela mãe ao reencontrar a filha transformada, saudável e em perfeito juízo.

Ah aquela mulher síria. Louca, gritando atrás de Jesus. Queriam se livrar dela. E ela, mestra eternizada nos evangelhos, deu-nos uma grande lição de humildade e fé.

O demônio está solto hoje em território Sírio. Cidades inteiras estão em ruínas. Outras estão tomadas ou por uma ditadura cruel ou por milícias não menos cruéis. A comunidade internacional não chega num acordo de como interferir no conflito de forma a pacificá-lo. USA, polícia do mundo, preferiu, pelas suas experiências má sucedidas no Iraque, ficar formalmente fora. Rússia apoia o ditador. Nesse solo espinhento brota o Estado Islâmico espalhando terror com suas decapitações on-line e recrutando jovens do mundo inteiro para uma guerra santa.

Ao cidadão comum sírio, às mulheres sírias resta não outra alternativa a não ser vir pedir socorro, salvação, a uma Europa cristã – é bom frisarmos aqui o termo cristã.

Sempre olho com respeito e bons olhos a situação religiosa dos dois principais líderes alemães: o presidente, que era pastor luterano e a chanceler, filha de pastor luterano. E ambos são cristãos confessos. Não se trata simplesmente de uma tradição.

Quando começo a ver essa avalanche de islâmicos cruzarem as fronteiras germânicas começo a sonhar. Em meio a tanta miséria e terror, penso que Deus possibilita ao cristão comum europeu a chance de testemunhar do amor de Jesus a essas pessoas. Como alemão, sonho com a possibilidade do meu país reescrever sua história. Como cristão, sonho com a possibilidade única de pescar uma multidão de almas para Jesus.

Como já disse no início do texto são imaginações sem muita conexão com a realidade. Talvez será mais uma utopia que terei que manter, com migalhas, ao lado daquele outro sonho de ver ainda, um dia, o Brasil avivado…

Ah mulher síria, me ensine novamente sua lição de ser como um cachorrinho para que não falte a meu sonhos suas migalhas. Porque enquanto eles viverem, talvez eu mesmo permaneça vivo com eles.

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