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sábado, 26 de dezembro de 2015

O Milagre de Inhapim


No começo do ano de 1918, no interior de Minas Gerais, em Inhapim, vivia uma família muito pobre. Eles eram lavradores e faziam serviços para uma fazenda. O pai, no segundo casamento, não sabia como lidar com a nova esposa que, como ele, era viúva e tinha filhos. Ela tratava os filhos da falecida esposa como se fossem empregados de seus filhos. Especialmente, o Conradinho.

Conradinho, como era conhecido, era um menino franzino, mas muito esperto. Suas pernas finas eram ágeis e ele já pegava cavalo no pasto antes dos cinco anos. As pessoas implicavam com ele, porque era um garoto de brio e, como um bom mineiro, não levava desaforo para casa.

O que mais doía nele era quando falavam que seus olhos eram atraentes. As pessoas à sua Volta perguntavam o porquê do comentário olhos atraentes e os meninos, rindo, zombavam dele, dizendo que eram atraentes porque um atraía o outro. Conradinho era estrábico.

Naquele ano, a vida de Conradinho estava para mudar. Algumas coisas que acontecem e que, aparentemente, não têm qualquer importância, mas, depois de alguns anos, vemos que foram as sementes de um novo tempo.

No começo do outono, houve um surto mundial de um vírus, cujos efeitos ficaram conhecidos como Gripe Espanhola. Quando a gripe espanhola chegou a Inhapim, Conradinho foi um dos poucos que não morreram ou ficaram acamados com a doença. Seu contato com a terra e com o frio constante poderiam ter servido como um teste de resistência, preparando-o para a fase que viria adiante.

Mas o seu pai pegou a doença do coisa ruim, como falavam no interior. Ele ficou acamado por um longo período e não podia trabalhar. Naquele tempo, não havia qualquer direito do trabalhador. Ficar sem trabalho era o mesmo que ficar sem comida.

Conradinho tentava, com todas as suas forças, ajudar seu pai. Para ganhar alguns contos-de-réis, Conradinho ia à cidade vender balas caseiras, feitas com garapa de cana. Eram as balas puxa-puxa.

As crianças compravam porque era baratinho, mas, aos poucos, ele ia juntando os trocados e podia comprar a farinha e o arroz para ajudar em casa. Os adultos compravam, tentando ajudar aquele menino corajoso. Na venda da cidade, ele sempre conseguia alguma coisa a mais pelo pouco dinheirinho que ganhava com as balas.

Em julho daquele ano, Conradinho ia fazer sete anos. O inverno rigoroso e talvez o desejo de menino em aparecer bonito diante dos amigos fizeram com que Conradinho tivesse coragem de se aproximar do leito onde seu pai ficava inerte, para fazer um pedido muito difícil. Seu maior sonho era ganhar uma camisa listrada. E, como estava chegando  aniversário...

Seu pai, sofrido com as dores da doença, sentiu uma dor ainda maior em seu coração: a impotência da pobreza. Ele sabia que não poderia atender um pedido tão simples de seu filho. O pouco que eles tinham era para a comida. Não havia como comprar uma camisa para o Conradinho, não naquele ano. Mas, como pai, ele sabia que não podia fraquejar e deixar que Conradinho visse as lágrimas que insistiam em brotar. A criança não iria entender aquela dor de amor e se sentiria culpada pelo fracasso do pai.

Então, fazendo um grande esforço, sentou-se na cama e colocando a mão direita sobre a fronte do filho, disse as palavras que marcariam a vida de Conradínho e mudariam seu destino:

- Conradínho meu 'fıo'- falou o pai com a voz rouca e seu sotaque do interior de Minas - 'Ocê' é um bom 'fio'. Eu vejo que 'ocê' vaı' ser um grande homem. 'Ocê' vaı' ser um dotô e vai se 'casá' com a 'muíé' mais 'bonita' das Minas Gerais.

O pequeno Conrado entendeu que aquilo queria dizer que ele não ganharia a camisa listrada... Mas ele ganhou algo muito maior: ele ganhou uma visão do futuro.

Algo aconteceu dentro dele. Ele sabia que aquele velho doente, em cima de uma cama, não era uma pessoa qualquer, falando alguma coisa qualquer. Era o seu pai, e o seu pai nunca havia mentido, e se ele falou que iria ser assim, assim seria. Conradinho selou essa benção em seu coração como um cruzado que coloca sua armadura e levanta seu escudo para ir para a batalha.

Logo depois com a morte de seu pai, as coisas ficaram mais difíceis ainda para Conradinho. Em pouco tempo, os meninos já sabiam dos sonhos de Conradinho e implicavam, até caírem de tanto rir:

-Diz aí Conradinho... Você vai ser o que mesmo? Vai se casar com quem? - falavam, sem qualquer piedade daquele menino triste.

Mas Conradinho não se intimidava. Ele olhava fixo as montanhas no horizonte, como quem vê o que ninguém via e, lembrando das promessas de seu pai, dizia:

- Eu vou ser 'dotô' e vou 'mi casá 'com a 'muié' mais bonita das Minas Gerais - repetia, usando as palavras e o tom de voz que ouvira de seu pai.

Crianças não perdoam as fraquezas e os defeitos de outras crianças. São implacáveis para encontrarem apelidos que exponham as feridas e as vergonhas do outro. Muitos adultos ainda trazem sequelas das brincadeiras dos colegas de infância nos medos de falar em público, no medo de confiar, no medo de brincar e amar. São imagens de fracasso e de inferioridade que já estavam presentes na relação familiar, e que foram confirmadas na escola ou entre os amigos da vizinhança.

Mas, para Conradinho, a ironia tinha efeito contrário. Quanto mais riam, mais ele olhava para o futuro, simbolizado nas montanhas que sumiam no horizonte e quase que podia ouvir... Não desista, vá adiante...

Vendo a dedicação de Conradinho com seu pai e como ele lidava com as críticas das crianças, seu Sebastião Vaz de Melo chamou-o para trabalhar em sua farmácia, a única da cidade.

Seu Sebastiao era um homem bom. Não tinha filhos, mas tinha o coração de pai e adotou Conradinho desde o primeiro dia. Conradinho era o tipo de empregado que surpreendia. Seu Sebastião apresentou as tarefas que ele teria que cumprir: buscar o cavalo no pasto, colocar os arreios, abrir a farmácia, varrer tudo, limpar o balcão e lavar os vidros. Ele deveria chegar às 7 horas e 30 minutos em ponto.

Seu pai o ensinara a dar mais do que era pedido, a surpreender a quem paga o pão porque é assim que se sobe na vida, repetia com firmeza.

No primeiro dia do combinado, Seu Sebastião chegou às 7 horas e levou um susto. Encontrou a farmácia já aberta. Olhou para o lado e viu seu cavalo já pronto e arreado para sair. O salão da farmácia estava tão limpo que dava para se deitar com roupa branca. Os vidros dos remédios já secavam, emborcados.

Conradinho não parecia cansado. Pelo contrário, parecia uma criança que ganhou um brinquedo novo. Seus olhos atraentes brilhavam com a chance do primeiro emprego. E ele caiu na graça do seu dotô da cidade (não havia médico em Inhapim e o farmacêutico era considerado o médico prático).

Desse dia em diante, Seu Sebastião tinha sempre uma história para contar das proezas do Conradinho na farmácia. Seu coração de pai via a beleza do novo aprendiz...

A primeira coisa que o Seu Sebastião mandou fazer para o Conradinho foi um par de óculos, para a correção daquele estrabismo. Esteticamente, aquele presente até piorou seu aspecto desajeitado, mas o ajudou a enxergar melhor. Aos poucos, Conradinho ganhou roupas para ir ao colégio e finalmente aprendeu a ler e a escrever. Agora Conradinho tinha até sapatos!

Conradinho cresceu e se tomou um jovem de brio, como se fosse um filho do Seu Sebastião. A perda de seu pai foi atenuada com aquela família que o amava e o estimulava a ir além.

Ele prestou exame e foi fazer Faculdade de Farmácia, em outra cidade. Formado, voltou para trabalhar na mesma farmácia, não mais como um menino de recados, mas como o farmacêutico responsável. Agora, era ele quem fazia as fórmulas e aplicavas as injeções. Conradinho era admirado por todos da pequena cidade de Inhapim.

Um dia, ele viajou para rever uma prima distante que havia passado pela pequena Inhapim e abalou seu coração. A tia queria apresentar sua filha mais velha, mas ele tinha certeza de que Maria Anunciada era a mulher de sua vida.

Ao chegar à casa de sua tia, um fato interessante aconteceu. Sua prima tinha os seios muito avantajados e sentia vergonha das suas recentes saliências anatômicas frontais. Então, para se encontrar com o primo, ela amarrou um pano, apertando os seios contra o tronco, para diminuir o volume. Depois de algumas prosas, Conradinho, com seu jeíto observador, fez um comentário para a tia, quando a prima não estava junto deles:

-Tía, a Anuncíada é muito formosa, mas parece que falta algo - falou alisando seu próprio peito. A tia, discretamente, pediu licença, retirou-se da sala e foi até a cozinha, onde Anunciada preparava um café com bolo de fubá.

Minutos depois, as duas voltaram com as bandejas. Anunciada, agora, sem a faixa. Conradinho, de impulso exclamou:

- Tía, eu me enganeí. Não falta nada na prima!

Eles começaram a namorar. Conradinho falava em casar quando ela completasse a Faculdade de Odontologia, que havia começado em Vitória, no Espírito Santo.

Maria Anunciada, era muito bonita. No começo do namoro, ela foi convidada a representar o Estado do Espírito Santo no concurso de Miss Brasil. Naturalmente recusou, porque as moças de família não participavam destas coisas modernas.

E Conradinho se lembrou da promessa do seu pai: 'Ocê' vaı se 'casá' com a 'muié' mais 'bonita' das Minas Gerais...

Depois de casados, aumentou o sucesso do Conradinho como farmacêutico, ainda mais casado com uma doutora dentista formada. Tiveram dez filhos, dos quais seis vingaram.

Mas, com o sucesso, aumentou também a inveja dos que não haviam vencido como ele. Aqueles que riram dele quando era criança e continuavam pobres.

Um dia, numa competição de box (comum naquela época), um dos lutadores caiu e sofreu uma forte concussão. Então, levaram-no para o Conradinho dar uma injeção, já que não havia médico na cidade. Conradinho alertou que o caso do lutador era muito grave e que deveriam procurar um médico para operá-lo, porque o que ele tinha não era um desmaio; era um derrame. Não houve tempo. Ele morreu no caminho.

Era esse o pretexto de que seus inimigos precisavam para tentar intimidá-lo. Ameaçaram até matá-lo numa emboscada. Pensando em fazer o mal, seus inimigos impulsionaram o obstinado Conradinho e sua família para fora da cidade. Assim, foram para a cidade de Niterói, no Estado do Rio de Janeiro, onde ele cursou a Faculdade de Medicina. Desta forma, Conradinho cumpriu a segunda parte da bênção de seu pai. Foi um médico honrado e teve uma vida longa e próspera. Morreu bem velhinho, cercado por sua família. Formou seus filhos e viu alguns de seus netos se formarem doutores.

Talvez você tenha curiosidade de saber como eu sei dessa história com tantos detalhes. Eu cresci, ouvindo essa e muitas outras histórias do Conradinho, agora o Dr. Conrado Balbino de Souza, pai de meu pai.

por Roberto Aylmer em “Escolhas

3 comentários:

Marlene de Fatima disse...

Amei da forma com que foi contada essa linda História.É de gente assim,que se fez e faz nosso povo.Conheci o senhor Moacir e dona Aparecida.Eles foram meus vizinhos.Obrigada por poder saborear sua história.Parabéns!

Antônio Grossi disse...

Bom dia, linda história! Eu tinha um tio avô chamado Sebastião Vaz de Melo, que casou com minha tia de sangue Francisca Silva Araújo, em Inhapim, MG. Mas ele era coletor em Belo Horizonte, talvez sejam parentes do homônimo que acolheu o Conradinho. Abraços!

Silvana Rocha disse...

Bom dia!!!
Eu, embora nascida em 1956 na cidade de Iapu foi na cidade de Inhapim que eu cresci estudei e me casei. Tais nomes não me são estranhos posto que convivi com os descendentes, os filhos de Dona Aparecida e Seu Moacir, Solange, Márcia, Conrado, frequentava àquela casa de minha amiga Solange Maria. Saudades.