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terça-feira, 15 de junho de 2010

Mistério de Bola

“QUANDO Yong-Jo, o de pés ligeiros, se apoderou da cobiçada es­fera, logo o suspeitoso Lúcio lhe partiu ao encalço, mas já Luisão, semelhante à chama, lhe cortou a avançada. A tarde de olhos radiosos se fez mais clara para contemplar aquele combate, enquanto os agudos gritos e imprecações em redor ani­mavam os contendores. A uma investida de Chol-Hyok, o de fera catadura, o couro inquieto quase se foi depositar no arco de Júlio César, que com torva face o repeliu. Eis que Gilberto, de ala­das plantas, rompe entre os adversários atônitos, e conduz sua presa até o solerte Kaká, que a transfere ao valoroso Elano, e este por sua vez a comunica ao belicoso Robinho. A essa altura, já o cansaço e o suor chegam aos joelhos dos combatentes, mas o Jong-Hyok enfurecido, como o leão que, fiado na sua força, colhe no rebanho a melhor ovelha, rompendo-lhe a cerviz e despeda­çando-a com fortes dentes, para em seguida sorver-lhe o sangue e as entranhas - investe contra o desprevenido Lúcio e atira-o sobre a verdejante relva calcada por tantos pés celestes. Os ve­lozes Gilberto Silva, Maicon e Nilmar quedam paralisados, tanto o pá­lido temor os domina; e é quando o divino Luís Fabiano, a quem Zeus infundiu sua energia e destreza, arremete com a submissa pelota e vai plantá-la, como pomba - entre os pés do siderado Myong-Guk...”

Assim gostaria eu de ouvir a descrição do jogo entre brasi­leiros e norte coreanos, e a de todos os jogos: à maneira de Homero. Mas o estilo atual é outro, e o sentimento dramático se orna de termos técnicos. Mesmo assim, quando o cronista especiali­zado informa que o Botafogo "não estava numa tarde de grande inspiração" ou que Zizinho "se desempenhou com o seu habitual talento", fico imaginando que há no futebol valores transcenden­tes, que nós, simples curiosos, não captamos, mas que o bom torcedor vai intuindo com a argúcia apurada em uma longa educação da vista.

Confesso que o futebol me aturde, porque não sei chegar até o seu mistério. Entretanto, a criança menos informada o pos­sui. Sua magia opera com igual eficiência sobre eruditos e sim­ples, unifica e separa como as grandes paixões coletivas. Con­tudo, essa é uma paixão individual mais que todas.

Cada um tem sua maneira própria de avaliar as coisas do gramado, e onde este vê a arte mais fina, outro apenas denun­cia a barbeiragem ou talvez um golpe ignominioso. Pelo nosso clube fazemos o possível, e principalmente o impossível. O jo­gador nos importa menos que suas cores, e se muda de camisa pode baixar em nossa estima, à revelia de toda justiça.

A estética do torcedor é inconsciente; ele ama o belo atra­vés de movimentos conjugados, astuciosos e viris, que lhe pro­duzem uma sublime euforia, mas se lhe perguntam o que sente, exprimirá antes uma emoção política. Somos fluminenses ou vascos pela necessidade de optar, como somos liberais, socialis­tas ou reacionários. Apenas, se não é rara a mudança do indiví­duo de um para outro partido, nunca se viu, que eu saiba, tor­cedor de um clube abandoná-lo em favor de outro.

Finalmente, a grande ilusão do gol confere alta dignidade à paixão popular, que não visa a um resultado positivo e dura­douro no plano real, mas se satisfaz com uma abstração: 22 ho­mens se atiram uns contra outros, e era de esperar que os mais combativos ou engenhosos, saindo triunfantes, deixassem os de­mais no campo, arrebentados. Não. O objeto de couro trans­põe uma linha convencional, e o que se chama de vitória apa­rece aos olhos de todos com uma evidência corporal que dis­pensa a imolação física. Não podemos acusar de primitivismo aos que se satisfazem com este resultado ideal.

Mexido e adaptado de Carlos Drummond de Andrade

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