“QUANDO Yong-Jo, o de pés ligeiros, se apoderou da cobiçada esfera, logo o suspeitoso Lúcio lhe partiu ao encalço, mas já Luisão, semelhante à chama, lhe cortou a avançada. A tarde de olhos radiosos se fez mais clara para contemplar aquele combate, enquanto os agudos gritos e imprecações em redor animavam os contendores. A uma investida de Chol-Hyok, o de fera catadura, o couro inquieto quase se foi depositar no arco de Júlio César, que com torva face o repeliu. Eis que Gilberto, de aladas plantas, rompe entre os adversários atônitos, e conduz sua presa até o solerte Kaká, que a transfere ao valoroso Elano, e este por sua vez a comunica ao belicoso Robinho. A essa altura, já o cansaço e o suor chegam aos joelhos dos combatentes, mas o Jong-Hyok enfurecido, como o leão que, fiado na sua força, colhe no rebanho a melhor ovelha, rompendo-lhe a cerviz e despedaçando-a com fortes dentes, para em seguida sorver-lhe o sangue e as entranhas - investe contra o desprevenido Lúcio e atira-o sobre a verdejante relva calcada por tantos pés celestes. Os velozes Gilberto Silva, Maicon e Nilmar quedam paralisados, tanto o pálido temor os domina; e é quando o divino Luís Fabiano, a quem Zeus infundiu sua energia e destreza, arremete com a submissa pelota e vai plantá-la, como pomba - entre os pés do siderado Myong-Guk...”
Assim gostaria eu de ouvir a descrição do jogo entre brasileiros e norte coreanos, e a de todos os jogos: à maneira de Homero. Mas o estilo atual é outro, e o sentimento dramático se orna de termos técnicos. Mesmo assim, quando o cronista especializado informa que o Botafogo "não estava numa tarde de grande inspiração" ou que Zizinho "se desempenhou com o seu habitual talento", fico imaginando que há no futebol valores transcendentes, que nós, simples curiosos, não captamos, mas que o bom torcedor vai intuindo com a argúcia apurada em uma longa educação da vista.
Confesso que o futebol me aturde, porque não sei chegar até o seu mistério. Entretanto, a criança menos informada o possui. Sua magia opera com igual eficiência sobre eruditos e simples, unifica e separa como as grandes paixões coletivas. Contudo, essa é uma paixão individual mais que todas.
Cada um tem sua maneira própria de avaliar as coisas do gramado, e onde este vê a arte mais fina, outro apenas denuncia a barbeiragem ou talvez um golpe ignominioso. Pelo nosso clube fazemos o possível, e principalmente o impossível. O jogador nos importa menos que suas cores, e se muda de camisa pode baixar em nossa estima, à revelia de toda justiça.
A estética do torcedor é inconsciente; ele ama o belo através de movimentos conjugados, astuciosos e viris, que lhe produzem uma sublime euforia, mas se lhe perguntam o que sente, exprimirá antes uma emoção política. Somos fluminenses ou vascos pela necessidade de optar, como somos liberais, socialistas ou reacionários. Apenas, se não é rara a mudança do indivíduo de um para outro partido, nunca se viu, que eu saiba, torcedor de um clube abandoná-lo em favor de outro.
Finalmente, a grande ilusão do gol confere alta dignidade à paixão popular, que não visa a um resultado positivo e duradouro no plano real, mas se satisfaz com uma abstração: 22 homens se atiram uns contra outros, e era de esperar que os mais combativos ou engenhosos, saindo triunfantes, deixassem os demais no campo, arrebentados. Não. O objeto de couro transpõe uma linha convencional, e o que se chama de vitória aparece aos olhos de todos com uma evidência corporal que dispensa a imolação física. Não podemos acusar de primitivismo aos que se satisfazem com este resultado ideal.
Mexido e adaptado de Carlos Drummond de Andrade
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