Passava em frente da casa de Albert Dürer, quando fui surpreendido por uma senhora japonesa me abordando com lágrimas nos olhos e gritos:
- Meu filho, meu filho! Perdi meus quatro irmãos em Fukushima, não perca os seus enquanto eles estiverem vivos. Não perca seus irmãos!
Ela me olhou bem nos olhos, com seus olhos orientais negros e balbuciou em meu ouvido:
- Depois de 200 anos vocês se encontrarão novamente.
Pensei: Pobre velhinha maluca…
Ela porém me abraçou fortemente e colocou em minhas mãos uma bolsinha vermelha, dessas que velhinhos usam para guardar suas miúdas moedas. E sumiu no Mercado Central de Nurembergue.
Somente uma pessoa com a genialidade de Paulo Brabo poderia abrir um livro tão profundo e complexo como o Gênesis e extrair dali a saga dos relacionamentos fraternais. Resumindo, é a história que se inicia com um irmão, Caim matando o outro, Abel, passando por um irmão fugindo do outro e termina com irmãos se reconciliando e vivendo juntos uns com os outros. A conturbada história do meu relacionar com os outros quatro filhos de meus pais não está muito longe de ser também uma saga – mas nada que se compare a Gênesis.
Ao abrir a bolsinha vermelha percebi que havia ali cinco pequenas chaves douradas, cada uma com uma letra e um número gravado.
Comecei também a chorar porque me lembrei dessas chaves. Eu já as tive um dia em minhas pequenas mãos. Elas eram minhas! Como eu brinquei com elas na minha infância… diariamente…
As letras eram as iniciais de nossos nomes, Ro, ME, P, D, Ra. E os números as nossas respectivas idades. Somei as idades e vi que juntos tínhamos 199 anos. Quando o próximo irmão aniversariar, e por uma horrorosa coincidência serei eu, faremos a fabulosa cifra de 200 anos sobre a face da terra. O reencontro estava profetizado.
Poucas músicas me fizeram chorar mais nos últimos tempos do que “Encontros e Despedidas” de Milton Nascimento. Não consigo ouví-la sem derramar a alma e lágrimas com frases do tipo “mande notícias do lado de lá”, “diz que fica” e “estou chegando é hora de partir”. Meu Deus que agonia é a separação!
A chave dourada com a inicial P de Paulo, foi usada na última década umas 3 vezes na Europa e umas 5 no Brasil. O que dá uma média de 1 vez por ano. É pouco. Eu sei, há irmãos que não se vêem há décadas. Na minha infância, não conseguia entender como meu pai morando só a dois Kilômetros de seu irmão, só o visitava uma vez por ano, só dois quilômetros…
Antes era porém diferente. Aquela minúscula chave abria o mundo dos esportes, da paixão por futebol, pelo Cruzeiro, por brincadeiras, por camaradagem. Era ela que abria as portas da diligência, da correção, da austeridade, da responsabilidade, de uma vida pautada pela lógica de uma sociedade que só funciona quando servimos o próximo. Foi o Paulo que se encarregou de me manter informado diariamente, através de seus telefonemas, quando nosso pai estava sendo operado no Brasil; vindo finalmente a largar de nossas mãos aqui, para se agarrar definitivamente nas de Deus, de Maria, de minha mãe, e de seus parentes que também já deixaram essa dimensão da vida. Não podia acreditar que recuperava aquela chavinha!
Com a chave das iniciais ME abria baús contendo livros, músicas e filmes. Foi a Maria Elisa, exercendo sua mentoria de irmã mais velha quem, com gosto pela vida, nos introduziu ao 14 Bis, Roupa Nova, Queen, Peter Frampton, e todos outros. É verdade foi com Paulo que assisti Gandhi na infância, mas foi na companhia de Elisa que assisti Superman e Star Trek e todos outros. Sua contagiante e radiante alegria e paixão pela vida que pode trazer luz como um sol ou sufocar nas horas mais quentes do dia, é a força que nos abriu a porta da Europa e me fez perseverar nos momentos mais difíceis aqui. Enquanto que com a chave P abria salas de conversação com papos análiticos e vastos, com ME eram conversas viscerais. Agora eu tinha essa chave em minha posse novamente!
Aquela minúscula chave contendo um D, que nasceu quase que agarrada ao meu calcanhar, me transferiu da posição de “mentorado” para “mentor”. Demorei uns bons anos para aprender como usar bem aquela chave e extrair as riquezas que ela guardava: coisas bobas como amizade, lealdade, companherismo, respeito e afeto. Quando finalmente fui alcançado e ultrapassado por Denise no mundo acadêmico, pude desfrutar da alegria de tê-la como colega de sala e do orgulho de vê-la vencendo e indo além de mim. Essa foi a última chave que perdi, tendo em vista que emigramos quase que simultaneamente para o continente europeu por razões matrimoniais. Eu e Denise colocamos em prática todo o melhor das conflitantes teorias desenvolvidas e testadas de antemão por Paulo e Maria Elisa. Agora aquela chave era minha de novo!
A última chave dourada com as letras Ra foi a que me abriu as dimensões de uma vida temperada pela presença de uma pessoa como Raquel. Um pouco mais nova do que nós quatro, Raquel mudou completamente as forças gravitacionais dos nossos relacionamentos. E mais do que isso ela trouxe o novo elemento do “de novo”. Foi ela que em nossa adolescência zelou para que não esquecêssemos tão depressa o valor da infância, que em nossa juventude não esquecêssemos o valor da adolescência, e que fatalmente em nossa rabujenta velhice nos lembrará da juventude. Lamento ter perdido essa chave tão rápido, pois cronologicamente foi a que pude usar menos, mas não menos intensamente. Não fui à formatura de Raquel, não fui ao seu casamento, não fui ao batizado de sua filha… Foi com aquela chave que aprendi abrir a caixinha com a tecla do esquecimento. Uma tecla que você aperta e não pensa mais nas pessoas que você ama e com as quais você não pode mais viver. Uma tecla anestesiante, um narcótico para o coração, um ópio. E agora, eu a tinha em minhas mãos!
Tentei em vão achar a velha japonesa na multidão, só queria agradecer-lhe… ou, abraçar-lhe pelo restante da vida e chorar com ela, pois era tarde de mais, eu também há muito já havia perdido meus irmãos no terremoto do viver.
Minhas chavinhas! Será que um dia as usarei novamente? Será? Meu Deus!
Fiquei ali com aquela bolsinha vermelha nas mãos contendo cinco chaves douradas. Parei em frente ao hospital Heilig Geist e debrucei-me num dos murinhos da ponte sobre o Pegnitz. Tomei a chave Ra. Apertei a tecla do esquecimento, depois lancei as chaves nas águas. Ali elas estariam bem guardadas. O merecido sepultamento, no frescor das cristalinas águas frias de um rio alemão.
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