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segunda-feira, 21 de maio de 2012

Os Nicodemitas

Os dois momentos decisivos de Nicodemos e o Vento, de Philip Leroyer – extensa novela publicada postumamente em 2006 e, ao que se saiba, sua única obra completa – se passam num hoje célebre convento numa região remota e montanhosa de Portugal, cujo edifício abriga tanto um asilo quanto um orfanato. Esse palco peculiar é epítome e explicação da parábola; sua epígrafe, quase desnecessária, é o terceiro verso do décimo oitavo capítulo do evangelho de Mateus: “Em verdade vos digo que, se não vos converterdes e não vos tornardes como crianças, de modo algum entrareis no reino dos céus”.

A primeira página apresenta-nos austeramente ao Abrigo de Santa Luzia do Meira, que já conheceu dias melhores e em que restam dezenas de celas vagas e cinco freiras encarquilhadas. Há numa área reservada uma parede coberta de fotografias, há banheiros com piso de losango, há num pátio um poço que durante certo Pentecoste a Saúde mandou impossivelmente selar. É uma inclemente noite de inverno e um carro deixa, à porta do asilo, uma maca com o corpo inconsciente e nu de um velho anônimo.

Movidas de compaixão, as freiras arrastam a maca para um dos muitos quartos disponíveis, banham o estranho, vestem-no com um puído pijama azul e aquecem-no com cobertores e fogareiros. Com um tossido ou soluço o homem volta a si; seis semanas depois é capaz de sentar-se; seis meses depois, de andar e entreter os órfãos com histórias de um tempo em que a terra era informe e vazia. Quando crê-se inteiramente recuperado, deixa dobrado um pijama impecável sobre a cama e parte de ônibus pela estrada sinuosa.

Vai morar em Braga, depois Lisboa, depois Paris. Com o passar gentil dos anos cresce-lhe uma selvagem cabeleira de finíssimos cabelos grisalhos; seu rosto ganha um renovado rubor e ele deixa crescer um bigode viril. Numa visita de rotina ao hospital, encontra uma companheira e toma-a pela mão. Vão para casa juntos e compartilham castamente da cama naquela noite.

Sessenta anos e oitocentas páginas depois o estranho retorna com a esposa ao convento de Meira, que está (mesmo o meu leitor já o terá adivinhado) inteiramente outro: um órfão despeja água fresca no poço aberto do pátio; a superiora remove uma única moldura da parede reluzente e cheirando a tinta; o sino da capela dispersa mais de meia centena irriquieta de jovens freiras. O estranho e sua esposa sorriem assombrados para o espelho no fundo do corredor e sentam-se de mãos dadas numa das camas do orfanato. Não é o fim de suas aventuras e o livro não chegou ainda a seu clímax, mas o círculo está perto de fechar.

Philip Leroyer escreveu no leito de morte. Nicodemos e o Vento é obra lenta, laboriosa e extensa, vertiginoso esforço de um escritor que não se esquivou à agonia de 1200 páginas para deixar uma primeira, última e unificada impressão. Lidas as primeiras cem páginas não haverá leitor que não tenha intuído a reviravolta central; sagazmente, Leroyer, não faz com que o livro dependa dela. As incessantes revelações são apresentadas ternamente, surrealmente; há, por exemplo, o dente que o viajante encontra em certo parque de Paris e encaixa com sucesso no espaço entre um incisivo e um molar; há a belamente executada cena da revoada de corvos numa estação de trem; há o sutil rejuvenescimento dos protagonistas, cuja improbabilidade é aplacada ou exacerbada pelo rejuvenescimento do mundo a seu redor.

Nicodemos e o Vento não é, como comprova o artigo crítico de Harold Bloom, a primeira obra de ficção a pressupor um sentido reverso para o passar dos anos. É, no entanto – tanto quanto eu saiba, – o primeiro a produzir uma lógica inerente para este universo invertido. Um mundo em que a flecha do tempo se desloque do futuro ao passado, embora impermeável à nossa intuição vulgar da realidade, não é inconcebível para a física contemporânea. Leroyer supre essa nossa lacuna intuitiva com uma bem construída lógica interna, deixando no caminho da narrativa um número mais do que satisfatório de – para usar a expressão de Bloom – “razões ao contrário”. Nada no mundo reverso imaginado por Leroyer é arbitrário; o que poderiam parecer coincidências fortuitas são representação e explicação de um anelo sincero dos personagens; não estão em momento algum separados de sua busca. O universo deNicodemos e o Vento não é mais improvável do que o nosso.

Porém a ambição do autor é maior; ele não apenas deseja que sua criação apresente coerência interna satisfatória. Leroyer quer que seu mundo de tempo reverso faça mais sentido do que o convencional; quer que a lógica do seu universo seja capaz de explicar todas as idiossincrasias do nosso. Quando, depois de quatro anos juntos no orfanato, o jovem protagonista e sua jovem esposa finalmente se despedem (são agora crianças e estão, no fluir implacável do que chamamos de futuro para o que chamamos de passado, vendo-se pela última vez), o momento é ao mesmo tempo emocional e celebratório; o peso da experiência comum e transformadora dos anos é aplacado pela perspectiva de um destino premente, uno e glorioso. A misteriosa intensidade do que no nosso mundo chamaríamos de paixão à primeira vista é explicada no universo reverso de Leroyer como a emoção mista da separação feliz depois de uma longa convivência.

Philip Leroyer, que era pastor da seita evangélica dos nicodemitas e escrevia em seu pijama puído numa cama de ferro no asilo de Santa Luzia do Meira, não esconde no pósfacio que seu livro é rigorosamente uma apologia à sua crença e uma autobiografia reversa.

Os nicodemitas, como hoje não há quem não saiba, crêem que é apenas uma diabólica ilusão que nos faz acreditar que o tempo prossegue do passado em direção ao futuro – e portanto da integridade à decadência, da vida à morte, da inteireza à dissolução. A realidade (e se tivéssemos fé suficiente seríamos capaz de enxergá-lo) é simetricamente inversa: o tempo caminha do futuro ao passado, da dissolução para a inteireza, da separação para a impensável união, de Apocalipse para Gênesis.

Os partidários da seita, da qual o pai de Leroyer foi fundador formal, encontram abundante (porém nunca incontroversa) evidência na Escritura para sua posição. Os evangelhos não escondem que Jesus falava em parábolas; os nicodemitas crêem que apenas eles sabem o quanto. Quando afirma que os mortos ressuscitarão de seus túmulos e que o mar dará de si os seus mortos, Jesus não está falando de um momento imponderável no futuro, mas apenas asseverando o rumo natural das coisas. No mundo reverso dos nicodemitas, em que a vida começa na morte e glorifica-se no nascimento, os homens nascem adultos, erguidos solenemente do chão em seus caixões, depois de terem sido formados do pó da terra – o que é, naturalmente, prefigurado na narrativa da criação em Gênesis.

O momento emblemático da revelação dessa boa nova encontra-se, conta-nos o posfácio de Leroyer, na conversa de Jesus com Nicodemos registrada no terceiro capítulo do evangelho de João.

“Em verdade, em verdade te digo que, se alguém não nascer de novo, não pode ver o reino de Deus”, começa Jesus, expondo já a essência da revelação. Porém é Nicodemos que coloca a coisa com todas as letras:

“Como pode um homem nascer, sendo velho? Pode, porventura, voltar ao ventre materno e nascer?”

“Não te admires de eu te dizer: importa-vos nascer de novo,” replica Jesus. E acrescenta, esclarecedoramente: “o vento sopra onde quer, ouves a sua voz, mas não sabes donde vem, nem para onde vai”.

O vento, asseveram tranqüilamente os nicodemitas, é aqui (como em toda Escritura) símbolo inequívoco do tempo. Nicodemos, segundo Jesus, pode ouvir o sopro do tempo, mas é incapaz de reconhecer a sua direção – de onde vem ou para onde vai. A denotação é clara: o tempo sopra, ao contrário do que parece sugerir nossa pobre intuição, do futuro para o passado, da morte para a vida, da velhice para o nascimento – que é o mergulho estarrecedor e unificador e batismal no ventre materno. “Importa-vos nascer de novo” e “se não vos tornardes como crianças de modo algum entrareis no reino dos céus” não são meras injunções de Jesus; são sua desapaixonada constatação.

No universo de tempo reverso, que os nicodemitas querem crer ser o verdadeiro e único, todas as coisas tendem à restauração e à unidade, em necessário contraste com o nosso, em que tendem à decadência e à divisão. O apocalipse é experiência diária, e as pessoas nascem diariamente de seus túmulos; a existência humana na terra é um eterno rejuvenescimento que sara todas as feridas e apazigua todos os rancores. O que chamamos de último suspiro é o primeiro, e o nascimento é o “voltar ao ventre materno” profetizado por Nicodemos. A humanidade experimenta um irreversível processo de unificação, prefigurado na genealogia inversa do terceiro capítulo da primeira carta aos Coríntios, que começa em Jesus e termina em Adão, e por fim, no próprio Deus: ”…Lameque, filho de Metusalém, filho de Enoque, filho de Jarede, filho de Maalalel, filho de Cainã, filho de Enos, filho de Sete, filho de Adão, filho de Deus”.

O destino da humanidade, sua redenção, é recuperar a unidade com Deus; quando tivermos todos mergulhado no ventre de nossos pais, quando todos os livros e todas as artes e toda obra humana reverterem ao silêncio e formos todos Adão, mergulharemos – seremos batizados – no ventre de Deus e o vento do Espírito será desnecessário e deixará de soprar.

Quem tem ouvidos para ouvir, ouça. No pátio de Santa Luzia do Meira, na parábola biográfica de Leroyer, convivem órfãos e anciões: os últimos são os recém-chegados, os primeiros os experientes; os últimos estão aprendendo austeramente viver, os primeiros brincam de roda para celebrar incessantemente seu destino iminente no ventre da inteireza.

Philip Leroyer foi casado com Edda de Oliveira, que morreu de câncer num hospital de Paris. Não tiveram filhos.

Leroyer era adotado. Na cena final de Nicodemos e o Vento as freiras devolvem sobriamente o bebê (que é Philip e já foi um velhinho e um homem de bigode e um marido adolescente e uma criança orfã, nessa ordem) a sua mãe, que o recebe em lágrimas e leva-o, vicariamente, para casa.

Paulo Brabo

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