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sexta-feira, 29 de novembro de 2013

O Reino de Deus subsiste sem a Bíblia

Se Jesus tivesse percorrido a Palestina com uma Bíblia debaixo do braço eu teria, agora, ficado calado. Mas não foi bem assim…

Se Jesus tivesse dado aos seus discípulos aulas de Torá eu teria poupado nosso tempo, não redigiria essas linhas e você não as estaria lendo. Mas o Messias não saiu ensinando baseado em Livros Sagrados…

O Cristianismo que nasceu no berço e na tradição do judaísmo, teve duas amas gentias, uma grega e outra romana. A grega tratou de iniciar a criança em todo o seu sistema filosófico, já a romana, em seu sistema jurídico.

Por isso esse senhor grisalho e caquético que observamos perambulando pelas ruas do mundo, chamado cristianismo, é tão viciados em livros. Sua religião foi amputada do judaísmo farisaico, dos doutores da lei, dos escribas: de uma religião do livro. Seu sistema filosófico foi formado todo nos escritos socráticos, platônicos e aristotélicos: extremamente academicista. E seus regulamentos e normas baseado na mentalidade jurídica do direito romano, com suas leis, costumes e parágrafos.

Adolescente que já foi, nosso cristianismo se embebedou com todo tipo e variações possíveis de literatura. E foi criando a cada porre a sua própria biblioteca, seus escritos de próprio punho.

Então o que assistimos hoje aí, esse velhinho aprisionado em seu asilo de livros, tendo a Bíblia no pedestal mor é algo distinto da religião inaugurada por Jesus. Ou em melhores palavras, não tem nada a ver com o Reino dos céus.

Que três coisas fiquem bem claras:

  1. A Bíblia não é uma espécie de carta magna do Reino de Deus, ela não é sua constituição.
  2. A Bíblia não é um tratado filosófico sobre o Reino de Deus de onde se extrai todos os seus princípios lógicos e éticos.
  3. A Bíblia não é, pasmem, uma regra de fé, nem um catecismo ou compêndio religioso onde se baseiam as crenças do Reino de Deus.

Faz-se necessário com isso situar corretamente o papel desse livro no contexto do Reino dos Céus. O fundamentalismo já nos provou, de forma incontestável, como Bíblia de mais, por incrível que pareça, pode até ser prejudicial.

Livros são em essência fantásticos. Mas existe também exagero de livros…

Nos lábios de Jesus:

“Eu te louvo, Pai, Senhor dos céus e da terra, porque escondeste estas coisas dos sábios e cultos, e as revelaste aos pequeninos. Sim, Pai, pois assim foi do teu agrado.”

Essa postagem portanto é um esforço de aprofundar o diálogo que venho travando a alguns dias com alguns amigos aqui na Net. Um deles me alertou que meu pensamento é muito preocupante e que estou me metendo em terreno perigoso. Outros tem pensado comigo e reforçado minhas convicções.

Como esta postagem tende a ser longa, ao contrário do que sempre desejo e faço, vou dividi-la em subtítulos para facilitar a leitura:

  1. A Bíblia um tesouro incalculável
  2. A Bíblia um tesouro raro
  3. Um tesouro além da Bíblia
  4. A Bíblia não é um manual do fabricante
  5. A lei ou a graça
  6. O risco da fé

Espero que aprecie.

A Bíblia um tesouro incalculável

Nasci católico, fui batizado quando criancinha e assim conheci Jesus dentro da tradição católica cristã. Já desde que aprendi a ler, lia os Evangelhos - um presente de meus pais. A história de Jesus narrada ali me perturbava, me desafiava e me fascinava.

Na adolescência minha irmã mais velha veio a me oferecer um dogma que marcaria minha caminhada de fé, “Rogério, a Bíblia é a Palavra de Deus para nós. Ela não falha. Podemos acreditar no que está ali.” Me lembro de nossas lágrimas devido ao alívio que essa afirmação me trouxe, pois me perturbava a idéia de não saber onde achar a verdade, nem em quem acreditar. Meu drama estava resolvido, tinha uma base objetiva para pautar minhas crenças. Tratei de pedir para mamãe como presente de crisma um exemplar completo da Bíblia.  Iniciei uma leitura sistemática a partir de Gênesis. As histórias narradas ali continuavam a me perturbar, me desafiar e me fascinar.

Não passaram muitos anos, e confesso, a Bíblia teve seu papel nisso, me tornei evangélico. Todo aquele modus vivendi que eu absorvera da Bíblia, e parecia-me impossível de ser alcançado tinha agora uma promessa de tornar-se real. Jesus estava acabando de entrar em minha vida. Ele tomaria o controle, ficaria no centro, e eu… sei lá, teria que ser jogado para escanteio, de uma vez por todas, ou aos poucos, não importa. O fato é que a Bíblia tinha razão e eu estava salvo!

Se antes eu já lia a Bíblia, passei então a devorá-la. Se antes eu já ouvia os evangelhos e pregações na missa, passei agora a ouvi-los quadruplicados: dois cultos por domingo, escola dominical e reunião de jovens.

Nada disso me fez desacreditar da Bíblia, pelo contrário meu fascínio só aumentava. Inúmeras coisas ali escritas começaram a fazer mais sentido ou assumirem um sentido novo. Se antes costumava ouvir a Deus através de uma voz interior, falando à minha consciência, agora ele se comunicava também por escrito.

Antes, minha fé já era com aquela Palavra formada e alimentada. O fato é que como adulto e assumindo uma nova postura frente a Bíblia o canal de comunicação era mais livre, havia uma maior demanda de minha parte e também uma maior capacidade intelectual e psicológica para compreensão do que eu lia. Além, claro, do ensino sistemático recebido na igreja evangélica. E sou grato a Deus por toda essa caminhada.

(Quis deixar aqui registrada essa experiência pessoal para mostrar que não quero desmerecer a Bíblia. Pelo contrário estou aqui para valorizá-la. Continuo tendo por ela o mesmo fascínio que sempre tive. E Deus fala comigo através dela, com sempre falou).

A Bíblia um tesouro raro

“No mundo evangélico, cada tendência tem seus senões, e é importante fazer corretivos. Só que ninguém quer admitir seus equívocos. Há muito orgulho, empáfia. A primeira coisa que qualquer denominação cristã deveria fazer é reconhecer que sua doutrina tem equívocos e lacunas.

Hoje o princípio sola scriptura foi esquecido no meio evangélico, a leitura através de óculos doutrinários não permite que ela fale por si mesma. Ela só fala aquilo que os constrangimentos impostos pela leitura dogmática permitem que ela fale.”. Ricardo Q. Gouvea

Fundamentalmente acredito como Ricardo Gouvea. Existe uma leitura tendenciosa da Bíblia. Mas talvez o problema vá além da hermenêutica.

O evangelicalismo (não só o Fundamentalismo) comete um grande erro em achar que:

  1. A verdade é conceitual e não uma pessoa; e assim
  2. Ele, o conceito verdadeiro, é o que libertará.

Algumas verdades conceituais podem até libertar, outras podem aprisionar. Liberdade perfeita só na Verdade pessoal da pessoa do Cristo.

Achando que a verdade que liberta é meramente conceitual, evangélicos se empenham em elaborar e transmitir conceitos - a "loucura" da pregação.

Na modernidade pensava-se que era possível catalogar tudo, até a espiritualidade. A pós-modernidade mostrou-nos que catálogos são supérfluos.

A própria Bíblia irá testificar que Jesus veio em carne, e isso assume um significado mais que conceitual. Pois aqueles homens, como a epístola de João irá ressaltar tocaram, viram e ouviram Jesus. Eles passaram por uma experiência sensitiva com o Verbo encarnado. É o que a academia chamará de empirismo.

A própria Bíblia é quem enfatizará a necessidade do empirismo na construção da fé religiosa.

Um tesouro além da Bíblia

Tenho meditado intensamente sobre esse tema, pois a Bíblia é um tesouro incalculável. Mas Deus se revela de outras formas preciosas. Quando o evangelicalismo fecha a revelação divina à Bíblia – àquilo que está escrito - ele mata e anula a própria Bíblia, e leva junto o Deus encarnado.

A fé que vem pelo ouvir, diz respeito a ouvir Deus, e não necessária ou exclusivamente um livro, uma Bíblia. A palavra de Deus é bem maior. Ouvir conceitos teóricos podem produzir conhecimento e até sabedoria, mas jamais fé, pois a fé sem obras é morta - fé precisa de prática.

Ouvir Deus, um Deus vivo que tem boca e fala, implica em experiência prática (não necessariamente de obediência), mas de fé, de credibilidade. Quando ouvimos e acreditamos, e conhecemos o Espírito que nos fala, somos libertos por esse Espírito - que é a Verdade.

Há muito tempo Deus falou muitas vezes e de várias maneiras aos nossos antepassados por meio dos profetas, mas nestes últimos dias falou-nos por meio do Filho

A Boa Nova só é boa e nova pois ela é maior que um conceito. O evangelho é mais experiência viva a ser compartilhada, do que teorias faladas. Ele é um olhar, um gesto, e não uma fórmula mágica a ser decorada e repetida.

A Bíblia não é um manual do fabricante

Alguém já disse que a Bíblia fala mais sobre o autor, sobre Deus, do que sobre o homem. Mas sem ler a Bíblia, como conhecer o caráter de Deus? ou- como você sabe que está ouvindo Deus? Perguntou-nos @SilviaGeruza.

Lendo a própria Bíblia, veremos que todos ali conheceram o caráter de Deus e discerniram sua vós sem terem a Bíblia que temos. (Todos, claro, é exagero, força de expressão. Alguns já tinham suas versões betas).

Cada tempo possui suas metáforas. Gerações passadas se acostumaram a encarar a vida como um sistema mecânico e mercadológico. E nada como buscar na mecânica e no mercado figuras que explicassem o cotidiano. Disso surgiu a idéia de Deus como o fabricante do homem. Como figura, situada em determinado contexto, pode até ter alguma validade. Mas não se pode exacerbar.

A leitura bíblica, que deve permanecer no patamar literário e espiritual começou a assumir um caráter mecanicista. Aperte esse botão e atingirá esse resultado. Siga essa instrução, obedeça esse mandamento e alcançarás a promessa atrelada a ele. Semeie tal semente, e colherá o fruto correspondente. “É a lei da semeadura!”

Tudo isso estaria muito bom e bonitinho, se não fosse o risco do exagero. E é neste risco que muitos caem. E a própria Bíblia irá alertar um sem número de vezes sobre esse perigo.

Francis Schaeffer foi um homem (provavelmente com feitos notáveis) que infelizmente tratou de reforçar e fundamentar a crença evangelical de que a Bíblia, e só a Bíblia, falaria por si só. Toda a base epistemológica, seja lá qual for a área científica que se estivesse tratando, estaria ali na Bíblia ancorada. Todo o conhecimento, toda a ciência deveria partir de princípios Bíblicos - e não estamos aqui falando somente da teologia. Por isso Schaeffer se escandalizou com homens como São Tomás de Aquino, que buscava pontes com o mundo Mulçumano e tratou de se aventurar em Aristóteles, ou com Kierkegaard, que repudiou o espiritualismo e a moral Hegeliana, propondo que a história não seguia dialeticamente seu curso mecânico, mas era rompida pela existência do indivíduo e suas crises.

A vida religiosa, a fé, implicaria necessariamente no rompimento de padrões preestabelecidos, seja pela estética, seja pela ética.

A ideia da Bíblia como manual do fabricante, em última análise, colocaria o ser humano como uma máquina, funcional. Para resolver seus problemas, bastaria consultar o capítulo que tratasse do assunto e seguir as instruções. Estava tudo ali!

Ledo engano…

A lei ou a graça

Se tem algo que a Bíblia deixa claro, desde o início é que Deus deu-nos arbítrio. Não somos robôs. Somos livres para escolher nosso próprio caminho. Em uma palavra: O fabricante decidiu que seu invento não funcionaria ele viveria.

Jamais alguém seria capaz de redigir um manual do fabricante que explicasse o “funcionamenteo” daquele ser, criado à imagem e semelhança de Deus.

Deus decidiu que não seríamos, como computadores, programáveis, através de comandos a serem obedecidos, nem por Ele e nem por ninguém. Ele nos daria seu Espírito.

Por isso a lei de Deus, que é perfeita, não é um software escrito em nossos corações. Não somos máquinas.

Eu e você não funcionamos. Nunca funcionamos, nem jamais funcionaremos. Vivemos, fomos feitos para a vida!

Existe uma nuance semântica que pelo menos eu empresto às palavras obedecer e praticar. Talvez, não seja assim com todo mundo. Mas a mim, me foi passada muito a ideia de um Deus general, dando ordens e esperando obediência.

Por isso, por rejeitar esse Deus general, eu prefiro praticar a obedecer…

A obediência é importante e faz parte do jogo. Mas carrega muito a noção Senhor/ servo. Jesus enfatiza mais a relação de amigos - sinergética. Graça exige mais que obediência, exige iniciativa própria. O servo inútil é o que faz somente aquilo que lhe foi mandado e nada mais...

Kierkegaard irá mais longe e nos lembra que a "obediência" de Abraão soa até mesmo como desobediência, no plano ético.

Essa polarização entre lei e graça, entre obediência e liberdade não estaria errada, pois a lei foi dada por Moisés, mas a graça veio põe Jesus. Lei implica obediência, em seguir comandos e instruções. Graça implica em verdade, em liberdade em vida própria, relacional e portanto, autônoma.

O risco da fé

Que me perdoem dois mil anos de cristianismo, mas não consigo conceber Jesus chamando seus discípulos para um estudo sobre Daniel ou um outro livro qualquer das Escrituras. Imaginem: "Naqueles dias disse Jesus a Pedro, chame os outros, pois hoje ensinarei sobre o salmo 23. E semana que vem quero começar com Jó..." !?!

Temos contudo sim uma passagem extremamente rara e por isso extremamente significativa de Jesus abrindo os rolos sagrados para seus discípulos. Foi no caminho de Emaús, após ressuscitado.

E começando por Moisés e todos os profetas, explicou-lhes o que constava a respeito dele em todas as Escrituras.

O interessante é que nem mesmo a experiência prática (de contemplarem Jesus) e nem mesmo a teórica (de estudarem as Escrituras) levaram aqueles homens a reconhecerem o Filho de Deus. Ambas, conjuntas não foram suficientes para curarem a cegueira daquelas almas.

Quando estava à mesa com eles, tomou o pão, deu graças, partiu-o e o deu a eles. Então os olhos deles foram abertos e o reconheceram, e ele desapareceu da vista deles. Perguntaram-se um ao outro: “Não estava queimando o nosso coração, enquanto ele nos falava no caminho e nos expunha as Escrituras?

Notório é que o Mestre Jesus fez até mesmo seus corações queimarem, mas não foi suficiente para abrir-lhes os olhos. Foi o Amigo Jesus que proporcionou o reconhecimento, a cura, o relacionamento. Uma aula pode aquecer almas, mas é o dividir da mesa, do pão, que proporciona relacionamentos íntimos, pessoais e verdadeiros.

Assim Jesus Cristo não escolheu ser uma Bíblia encarnada. E após subir aos céus o Cristo providenciou-nos o dom, a companhia, de seu próprio santo Espírito; Ele não se empenhou em deixar-nos um catecismo ou regulamentação da fé, um livro.

A razão é simples: A espiritualidade baseada num livro tende a ser legalista e intelectualóide; já, a que se baseia no Filho é graciosa, singela e humana.

Sei que meu pensamento sobre esse tema é tido como muito preocupante…

Sei porém que as alternativas para o Sola Scriptura, são bíblicas, :

  • o misticismo, um relacionar direto com Deus;
  • os sentimentos, ideias humanas, subjetivismo, mitos;
  • a autoridade dos acadêmicos;
  • a autoridade da Igreja
  • a experiência, e etc.

Por isso a fé permanecerá um risco para as hierarquias para as instituições e para o próprio indivíduo. Ouvir, discernir e praticar a palavra de Deus é muito mais simples, e por isso muito mais perigoso, do que aquilo que nosso comodismo e conforto com todas as suas bíblicas teologizações nos querem fazer acreditar que é.

É chegado o Reino dos Céus e não será, me perdoe, sua Bíblia que te fará enxergar isso.

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