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segunda-feira, 3 de maio de 2010

Primeira pessoa do singular: EU

1157070[1] Escondido em uma caverna qualquer ao sul da península Balcânica,Teófilo procurava os pergaminhos. Aqueles que seu médico amigo lhe havia enviado pouco antes de seu martírio. Na calma do crepúsculo vespertino sob a luz de uma tocha, ele tentava recompor suas convicções sobre a religião que quase lhe custara a cabeça e lhe roubara as pessoas mais queridas. Sua busca se estenderia pelo frio da noite a fora até os terrores da madrugada a dentro.
Pela manhã, no dia anterior, pudera conhecer Benjamim um jovem hebreu que junto a uma caravana fugia de terras judias:
- O que eu sei sobre Jesus de Nazaré? Senhor, ele foi um impostor. Seus discípulos roubaram seu corpo para forjar uma ressurreição. Nós cremos em Javé, o Deus que não é o homem nem filho do homem. Javé tirou meu povo do Egito, com mão forte e se revelou a Moisés como o "Eu sou".
O eco das palavras daquele rapaz ainda lhe perturbavam a mente.
A dúvida que pairava no ar era: Quem? Teófilo acariciava suas barbas brancas, forçava a vista e tentava extrair daquelas linhas a resposta.
Estava claro, a história narrada por Lucas em seu segundo livro sagrado tinha o mesmo protagonista do primeiro livro, como bem observara certo monge de terras longínquas ao estudar uma cópia do manuscrito:
…[no evangelho, o autor] relatara “as coisas que Jesus começou a fazer e a ensinar”. (…) o livro de Atos, fica implícito, consiste na parte II: aquilo que Jesus continuou a fazer e a ensinar através de seus discípulos. (…) Não apenas uma única história e uma única linha narrativa, mas um único protagonista...
Por isso também alguns já sugeriram chamar o livro ao invés de Atos dos Apóstolos, de Atos do Espírito Santo.
Jesus, o Espírito Santo, o Eu sou, e agora os apóstolos, estariam todos fundidos numa só entidade chamada igreja? Onde estaria a linha divisória? Quem era quem afinal?
Teófilo lembrava dos ensinos de seus antigos mestres alquimistas que diziam "Gnothi seauton". Se ele já fez e ainda fazia parte desse corpo místico do Nazareno, a chave para reencontro dos contornos deveria ser achada ali mesmo, na escuridão e solidão daquela gruta, nas frágeis fibras cardíacas de sua própria alma e espírito. Ele partia de um egoísmo sadio que deveria começar e terminar no "Eu sou". Benjamin o tinha feito relembrar. Afinal de contas estas eram as claras palavras transmitidas pelo Mestre, o negar-se a si mesmo, o perder a vida, a morte; para a ressurreição, para ganhar a vida, para reafirmar-se.
Na verdade, Tomé havia relacionado isso em seu Evangelho, confirmando uma antiga corrente filosófica, que segundo a tradição, remonta a sábios que acompanharam Alexandre o Grande até a Índia.
"Sou o Eu, que reside no coração de todas as criaturas. Sou o princípio, o meio e o fim de todos os seres".
O mesmo espantoso e grandioso paradoxo seria, séculos mais tarde, repetido por um dos maiores líderes da humanidade também vindo de terras indianas, Gandhi, ao afirmar que ali no Bagavadguitá estaria o Evangelho da ação altruísta.
O rápido reencontro e a ruptura com o "Eu sou", encarnado na pessoa do outro. Esse breve contato de 40 dias seguido de uma nova e abrupta despedida constituiria o nó a ser desfeito ao longo do emaranhado daquela história.
Teófilo ruminava cada letra, palavra, sentença afim de se tornarem espírito em seu ser. Havia na breve introdução do livro uma dramática batalha entre o Messias e aquele grupo de Galileus que com ele comiam. Enquanto um deixava o palco, os outros tentavam roubar-lhe a cena:
- Quando o Reino "nos" será restituído?
- Vocês não têm competência para saber datas! Mas esperem.
O "Eu sou" que em Jesus fez e aconteceu, ensinou, sofreu e reviveu os havia escolhido para que, pelo mundo a fora, "eles fossem" dEle as testemunhas. A palavra era clara, estava escrito em bom e correto grego μαρτυς (martus). Eles estavam destinados – e possivelmente ele (Teófilo) e por conseguinte nós, você e eu também - a seguirem o mesmo caminho, o mesmo martírio.
(Continua...)

Um comentário:

Eduardo Medeiros disse...

Roger, beleza de texto!