Páginas

quinta-feira, 29 de julho de 2010

Por favor não me fale de depravação total!

Um dos maiores erros do cristianismo pós-reforma foi entrar pela esquina da doutrina do pecado original e tomar a via da depravação total acelerando em velocidade máxima.

É verdade que nem todos evangelicais seguiram mesmo rumo, mas lastimavelmente essa crença desfigurou irremediavelmente o atual evangelicalismo.

Não, não estou afirmando que os homens sejam anjinhos. O ponto é justamente esse: também não são demônios! Pelo menos, não todo mundo e não o tempo todo.

Quando um relojoeiro dá sua vida para reparar relógios, não é baseado na lógica de que os relógios se estragam facilmente, e normalmente ficam totalmente desregulados, e haveria algo de muito ruim a ser reparado. Não! A verdade na qual ele se debruça é que relógios são preciosos, precisos e funcionam bem, há algo de muito bom a ser reparado.

O evangelicalismo pensa ser fundamental entender (enxergar) a Depravação total do homem para se poder crer no Evangelho. E eis aí mais uma vez o gnosticismo, a ditadura do conhecimento correto. Para se crer em Jesus é preciso primeiro crer no Satanás!

O problema está evidentemente não só na “ditadura do catecismo”, mas nas consequências dessa lógica estranha:

  1. Conformidade com o mau caráter: Você se achará irremediavelmente depravado e se resigna, “afinal essa é nossa sina mesmo…(lembremos que a conversão não tornará ninguém impecável) então há muito pouco para se fazer sobre a questão do mal. Essa distorção desumaniza o ser humano pois, "assim como ele pensa em seu coração, assim ele é".
  2. Orgulho, superioridade: você achará que os outros são irremediavelmente maus, o que normalmente exige uma punição. Assim toda punição seria legítima dentro da lógica: "não sei porque estou batendo, mas ele sabe porque está apanhando".

Toda essa farsa está alicerçada sob a lógica de um versículo: “Não há um justo, nem um sequer.”

Comecemos nossa análise então por esse ponto. Tomemos um outro versículo:

“Noé era homem justo”

A semelhança desse encontraremos um sem número de textos que afirmam existir não poucos homens justos. As Escrituras testemunham também que o homem é bom! Vide a parábola do bom samaritano, para ficarmos só num exemplo de peso. Não só as Escrituras mas as evidências do dia a dia nos atestam da bondade humana.

O que vemos (no mundo e na Bíblia), e normalmente qualquer criança percebe isso, não sendo necessária nenhum instrução especial, é que o ser humano é capaz de atos bons e de atos maus. Ele pode ser mau ou bom. Existem pessoas que são muito boas e outras são muito más, e entre esses dois extremos flutua uma maça na mediocridade.

A conduta ética do indivíduo, no fundo, desempenhará um papel secundário em sua atitude frente ao Evangelho. Se ela desempenha um papel, esse será justamente inverso: Pessoas tidas como “más” entrarão primeiro do que as tidas por “justas” no Reino dos Céus. Isso não significa que “as que sem vêem como totalmente depravadas” entrarão primeiro. Conheço pessoas que são mal caráter e sabem que são, e nem por isso (ou até mesmo por isso) querem distância do Evangelho. O Evangelho sim deverá desempenhar um papel fundamental na conduta ética do indivíduo.

Creio na pobreza de espírito. Qualquer sujeito que sabe e reconhece seus próprios limites está perto de herdar os Céus, ainda que não acredite nele.

De fato, a humildade é, a meu ver, o único pré-requisito para se crer no Evangelho. Uma vez que Evangelho significa boa nova, é necessário que o homem esteja num patamar qualitativamente inferior àquilo que seja bom e novo para ele. Pode ser que ele esteja enfermo, e a novidade boa virá como cura. Pode ser que ele esteja faminto, e a salvação virá como pão. Pode até ser que ele se sinta culpado e o Evangelho virá como perdão, mas essa é só uma das várias facetas da multiforme graça de Deus, não necessariamente a principal. Pode ser que ele esteja só e o Evangelho lhe resplandeça como companhia.

Assim o significado da cruz de Cristo não é somente o expiatório, mas muito mais o reconciliatório, o pacificador, o agraciador, o passional. Essa é a real força do Evangelho, não que Cristo morreu por um mal caráter como VOCÊ, mas que um bom caráter como JESUS morreu apaixonadamente pelos homens, por você. E se Ele fez isso, não foi porque havia algo de ruim que precisava ser reparado, não, muito mais foi porque havia algo de bom que precisava ser reparado.

Esse é o nosso papel, não ficar mostrando ou tentando provar que o relógio do outro esteja depravadamente atrasado ou adiantado em milésimos de segundo, mas simplesmente atentarmos para que o nosso esteja marcando, no mínimo, a hora correta. E isso será automática e despretensiosamente algum tipo de referencial.

Nenhum comentário: