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quinta-feira, 10 de junho de 2010

O herói substituto (2)

Era unicamente nisto que ele se reconhecia culpado: em não ter persistido e em ter ido denunciar-se” - Fjodor Dostoievski em Crime e Castigo.

Conversando com um primo, logo após minha conversão ao protestantismo, chegamos, por seus lábios, à curiosa pergunta, porque diabos foi preciso que Jesus morresse na cruz?

É fundamental lembrarmos que os experts em capetologia não chegaram ainda a uma conclusão sobre os reais interesses satânicos frente à crucificação. A razão dessa incógnita é mais ou menos óbvia pois nem mesmo o próprio diabo sabia o que queria: se ao lado de Pedro ele tentou desviar o jovem Nazareno do Calvário, em Judas ele o arrastou para lá. Fundamental lembrança essa, que nos fará cientes que a dívida paga na cruz não veio para satisfazer os anseios do “Coisa Ruim”. Com essa teoria porém brincaram os eruditos cristãos dos primeiros séculos:

“Cristo ofereceu o sacrifício em nome de todos, submetendo seu próprio templo (corpo), em lugar de todos, para saldar a conta do ser humano com a morte e libertá-lo da primeira transgressão”Atanásio

Nessa mesma linha Agostinho escreveu que a morte de Cristo veio aplacar a ira divina e fazer com que o reino do diabo chegasse a seu fim.

O fato é que a Bíblia não se dá ao despropósito de oferecer uma outra figura exata (por definição figura permanecerá inexata) sobre o real sentido da real figura da cruz sangrenta e o corpo fragilizado e morto de um rei judeu bondoso e justo.

Reafirmo aqui que entender (não confundir com compreender) o coração daquele herói, que nunca entrou em desarmonia com as fibras paternas, não passa de um exercício do relacionar, e não mera especulação intelectual ou acadêmica. Esse relacionamento, como qualquer outro, só faz sentido quando alicerçado na prática experimental e conceptual crescente do conhecimento mútuo.

Assim, os várias e diferentes pensamentos e suas diferentes perspectivas do entendimento da obra do calvário têm valor individual em seus próprios contextos e não deveriam ser precipitadamente descartados. Dessa grande variedade extraímos o que fala da pacificação do homem com seu criador. A pacificação de um relacionamento que, em algum lugar no tempo e no espaço, foi deteriorado pelo pecado.

Justino Mártir por exemplo vem lembrar que toda a humanidade estava sobre a maldição divina, pois maldito seria quem não permanecesse na lei. Cristo veio então tomar sobre si essa maldição.

Eusébio de Cesaréia chegou a dizer que Cristo transferiu para si mesmo a desonra que estava em nossa conta. Ele sofreu a penalidade que nós merecíamos.

A verdade é que não podemos deixar de virar a moeda desse conflito, uma vez que estamos irremediavelmente presos a esse paradigma, e olhar para o outro lado: o humano. Olhemos para o fato evidente de que Jesus se fez pecado, que o Deus santo, se fez diante do mundo e dos anjos um bandido qualquer. Se Deus estava irado com o homem, não podemos ingenuamente achar que o homem estaria morrendo de amores por Deus. Dentre os primeiros pensamentos após uma mordida e outra no proibido fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal estava aquele que creditava (ou debitava) a Deus parcela do escorregão do Éden: “A mulher que VOCÊ me deu…” o que não era muito longe de “a árvore que VOCÊ plantou” ou “a serpente que VOCÊ criou”.

Portanto Cristo, ao pagar a dívida ofereceu heroicamente o mea culpa divino. Não no sentido proposto por José Saramago:

“clamou para o céu aberto onde Deus sorria, Homens, perdoai-lhe, porque ele não sabe o que fez.”

– não, mas no sentido que todos que já passamos por incontáveis processos de reconciliação conhecemos. Onde mesmo sabendo-se injustiçado, o justo mostra-se, em um primeiro momento, culpado, só para ganhar a confiança do genuíno lado culpado.

Por isso o pleonasmo “substitutos vicários” é legítimo e só vem a reforçar nosso dever heróico na trilha humilde, do sofrimento, do mea culpa, da reconciliação, da pacificação, do martírio.

Leia também: O herói substituto (1)

2 comentários:

O Tempo Passa disse...

Temos então um debate? Sr. Roger, de um lado e Sr. Brabo, de outro?
É correta a minha conclusão de que vocês divergem quanto ao papel da cruz? Para vc é substitutiva e para o Brabo, não? É isso?

ROGÉRIO B. FERREIRA disse...

Nego. Quem é o Sr. Brabo? Quem é o Sr. Roger?