- Padre Limeira, em que é que o padre é diferente dos outros homens, além da batina?
Esta pergunta, feita assim sem mais nem menos, desconcertou o padre. Voltando-se vivamente, ele se dispunha mesmo a censurar aquele desrespeito, mas deu com uns olhos sérios que o fitavam, esperando a resposta, e não parecia haver neles a intenção de desrespeitar ninguém.
- Que pergunta, menino - falou então. - O padre é o representante de Deus na terra.
- Eu sei - Geraldo Viramundo insistiu: - Mas eu quero saber a diferença entre o padre e os outros homens. Por que os outros não podem ser representantes de Deus na terra?
Padre Limeira não sabia o que dizer, nem onde o rapazinho queria chegar:
- O padre se prepara para isso - respondeu evasivamente. - Ele é tocado pela Graça.
- Tocado por quem?
- Pela Graça: pelo divino Espírito Santo. Você não estudou catecismo?
- E por que os outros homens não são tocados pelo divino Espírito Santo?
Agora o padre já se pusera mais à vontade para explicar:
- Não são porque levam uma vida de pecados e dissolução. O padre tem o poder de Deus para perdoar estes pecados. Quando você se confessa, Deus perdoa seus pecados através do padre.
- O padre nunca peca?
- Peca também, ora essa. Mas é diferente.
- Isso é que eu perguntei: diferente em quê?
Nesse ponto o padre percebeu que tudo ia começar de novo e perdeu a paciência:
- Por que é que você quer saber?
- Porque eu talvez resolva ser padre.
Padre Limeira esperava por tudo, menos por esta.
- Muito bem, meu rapaz. Fico satisfeito em saber. Vou lhe explicar: a diferença está em que o padre dedica-se inteiramente a Deus. Foge dos prazeres do mundo e põe-se a serviço da religião, pela prática da oração, da obediência, da vida ascética, da meditação.
Geraldo Viramundo quis saber o que era "vida ascética". O padre explicou-lhe como pôde, e a conversa ficou nisso. Mas influenciada pela presença do padre, a vida de Geraldo ia-se transformando inteiramente. O misticismo crescia nele com poderosas forças: começou a policiar com dureza os seus pecados, duplicou o número de orações durante a noite. E tendo entendido à sua maneira o que o padre lhe ensinara, começou também a praticar o seu ascetismo: passou a recusar a sobremesa depois do jantar, e para que ninguém desconfiasse, metia as mãos nos bolsos e saía assobiando; todas as noites, antes de se deitar, ficava parado com os braços abertos, sem se mexer, enquanto contava baixinho, como no tempo em que mergulhava no rio, até que a dor no corpo o prostrava sobre a cama; ficava se excitando mentalmente, a pensar as maiores imoralidades, já deitado, até que o sexo lhe doía de tanto desejo, e depois, mãos atrás das costas, se recusava. Quando fracassava neste último sacrifício (o que aconteceu quase todas as vezes), martirizava o corpo no dia seguinte, intensificando ainda mais os outros. Eram de uma variedade infinita, desde o mosquito que lhe pousava na testa e que ele, embora morrendo de cócegas, se recusava a espantar, até a vitória sobre o desejo de olhar para trás quando passava a filha dos italianos. Também passou a cultivar a obediência de uma maneira exagerada, a ponto de os irmãos abusarem dele. Um dia Breno, o mais velho, achou graça quando o pôs a descarregar sozinho umas
sacas de arroz de um caminhão, e ao fim deu com ele estendido no chão, prostrado de cansaço:
- Arriou a trouxa, seu frouxo?
Só a meditação é que não conseguia atingir, pois, embora fosse hábito seu já de longo tempo andar sozinho, absorvido em pensamentos, não sabia propriamente em que meditar.
Fernando Sabino – O Grande Mentecapto
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