“No mundo todo havia apenas uma língua, um só modo de falar.” Gen 11:1
A presença de Jesus em solos galileus arrastou consigo uma espantosa esperança. Esperança essa que seria juntamente com Ele de forma sádica e misteriosa pregada na cruz, morta e sepultada. O excesso de doçura das ilusões foi desfeito, os cacos das ambições juntados um a um e cuidadosamente jogados fora no lixão da realidade que tudo decompõe. Restou somente o gigantesco buraco de uma ressaca existencial; fruto do vazio criado, muito menos pelo fracasso dos sonhos ou ambições, mas muito mais pela saudade daquele abraço, sorriso, de suas palavras e do seu olhar, do seu ouvir.
Quando a partir do domingo de Páscoa, Ele começou a aparecer aqui e ali, parecia tarde demais para recuperar toda a escória ideológica das falsas expectativas criadas e alimentadas ao longo de três anos, e sepultadas em três dias. Mas o ardor do coração revelaria que a essência de tudo o que Ele representava repousava fora de tudo que fosse além de sua pessoalidade, humanidade, e simplicidade de sua única e mágica presença. Presença que inconfundivelmente revelava, não somente quem era o grande “Eu sou”, mas também quem “eu sou”. Reconciliando e reunindo um com o outro com os laços inquebráveis do amor.
Por ocasião de sua ascensão, uma nova e abrupta despedida levaria aquela pequena comunidade outra vez a uma ressaca que Pedro tenta institucionalmente remediar. Isso deixaria transparecer que as ambições não poderiam ser totalmente desfeitas e começavam a ressurgir das cinzas.
Na ansiedade de Pedro em completar o grupo dos doze, a simples luta pelo poder, expressão de mesquinha vaidade, que não achou nunca lugar nas pegadas de Jesus começava a aparecer em Jerusalém. Dois mil anos mais tarde todo o edifício institucional da chamada igreja (seja ela qual for) estaria marcado e condenado por essa vil rachadura.
“Nosso nome será famoso e não seremos espalhados pela face da terra”, arrogavam milênios atrás os homens de Babel. O parecer de Deus confirmava sua arrogância, “Eles são um só povo e falam uma só língua, e começaram a construir isso. Em breve nada poderá impedir o que planejam fazer”.
Metaforicamente como em Babel, Deus agiu em Pentecoste. O paralelo é inevitável:
- Em Babel o projeto humano edificado verticalmente sobre o nome humano foi substituído pelo divino que deveria se espalhar horizontalmente; de igual forma em Pentecoste, o projeto eclesiástico que se desvirtuava pelas soluções humanas, tendendo a se centralizar na verticalidade de poucos escolhidos, foi substituído pela dinâmica horizontal divina.
- Tanto em Babel como em Pentecoste um grupo que se fechava por meio de uma vaidade centrípeta seria radicalmente aberto por meio de uma espiritualidade centrífuga.
- Embora com finalidades distintas, tanto em em Babel como em Pentecoste Deus faz com que os homens falem em diversas línguas.
- Enquanto em Babel Deus agia para quebrar a unidade, em Pentecoste Deus age para gerar unidade.
“Venham, desçamos e confundamos a língua que falam, para que não entendam mais uns aos outros. […] Dali o SENHOR os espalhou por toda a terra.”
A trama unificadora que se passou na trindade, onde o Filho recebe do Pai o Espírito Santo prometido e o derrama, traria a força unificadora perdida em Babel. Mais do que uma força, o Espírito Santo, é virtualmente o retorno duradouro do “Eu sou”, agora não em carne e ossos de uma só pessoa; mas encarnado em vários que formando um só corpo “de mártires” se espalhariam por Jerusalém, Judéia, Samaria e até os confins da terra.
Por isso as palavras tão contundentes de Jesus sobre o derramar do Espírito:
“O espírito sopra onde quer. Você o escuta, mas não pode dizer donde vem nem para onde vai. Assim acontece com todos os nascidos do Espírito.”
Como no Velho Testamento, Pentecoste é também no Novo a festa dos primeiros frutos. Através daqueles discípulos o Espírito Santo recomeça a agir e interagir com a raça humana. Jesus estaria em espírito novamente pisando a poeira de nosso chão através de nossos pés. O Espírito Santo é Jesus, novamente entrando em contato com os doentes, é Jesus ensinando, é Jesus abraçando, rindo e chorando conosco.
O Espírito Santo é a terceira pessoa, ele, pois raramente ocupará o lugar da primeira ou da segunda na sentença. Em detalhes: raramente o veremos falando diretamente como primeira pessoa do discurso (eu). Raramente o veremos como ouvinte ou segunda pessoa (tu). E na maioria das vezes ele se passa por um objeto, a terceira pessoa (ele), sobre quem se fala. Assim em Atos Ele, o Espírito, será o assunto.
Sobre quem é o livro? Sem dúvida Jesus continua sendo o protagonista, mas agora na pessoa do Espírito, que acabava de ser derramado sobre seus discípulos.
Um comentário:
Esta série de textos é muito boa, rica, profunda e útil!!!
Brigadão, Roger!
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